Detector de bebida "batizada"

Pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos criam um sensor barato e sustentável que identifica líquidos contaminados com um tipo de sal cancerígeno. Sistemas semelhantes poderão, no futuro, detectar outras substâncias

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Força-tarefa de fiscalização de bebidas alteradas com metanol, na Grande em São Paulo: no estudo da UFSCar, o contaminante identificado é o nitrito de sódio
 -  (crédito:  Defesa Civil de São Paulo/Divulgação)
Força-tarefa de fiscalização de bebidas alteradas com metanol, na Grande em São Paulo: no estudo da UFSCar, o contaminante identificado é o nitrito de sódio - (crédito: Defesa Civil de São Paulo/Divulgação)
postado em 03/11/2025 00:01 / atualizado em 06/11/2025 19:22

Um aparelho de produção e uso simples surge como uma nova alternativa para analisar se bebidas estão ou não contaminadas por nitrito de sódio, produto químico que, se usado incorretamente, é bastante tóxico e pode causar câncer. A ferramenta foi desenvolvida na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Paulo, e utiliza apenas cortiça, material das rolhas de garrafas de vinho, por exemplo, como matéria-prima do sensor.

A ideia dos pesquisadores é que o equipamento possa ser usado em grande escala no futuro. A testagem mais rápida do que as convencionais é importante para evitar intoxicações, já que substâncias como o nitrito de sódio e até mesmo o metanol, causador de contaminações e mortes no mês passado, exigem atualmente exames sofisticados de laboratório para serem identificadas.

No estudo, foram feitas simulações com bebidas como suco de laranja, vinho e água mineral que imitavam a contaminação pelo nitrito de sódio. Comum na indústria alimentícia para dar cor avermelhada a embutidos, além de conservá-los por mais tempo, o composto químico também é útil como antídoto para intoxicações por cianeto. Porém, no Brasil, o uso da substância em bebidas é proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), porque, quando misturado a líquidos, pode ter efeito de veneno no organismo. 

Grafeno

A produção do aparelho usa cortiças comuns, queimadas por raios laser. O feixe de luz faz rasgos no material e cria espécies de caminhos; onde há esses trajetos, surge o grafeno, forma cristalina do carbono, capaz de atuar como condutor elétrico. O nitrito de sódio, propenso a reagir eletroquimicamente — ou seja, gerar eletricidade — cria uma carga que é transmitida na superfície da placa. É nesse ponto que o sensor entra em ação: se gerar uma corrente elétrica, é porque a bebida analisada está contaminada.

Aparelhos conectados à placa medem o valor dessa energia e calculam a quantidade de nitrito; quanto mais forte a corrente, maior a concentração do sal tóxico nas bebidas. Ou seja, a cortiça funciona como uma base para reações químicas após ser marcada pelo raio laser.

Antes de entrar em contato com os líquidos, o sensor precisa ser coberto com um spray impermeável e por esmalte de unhas comum, que tampa as áreas "queimadas". Com isso, o líquido todo não se mistura com o grafeno que surgiu na superfície do material, o que mantém sua capacidade como condutor elétrico.

Facilidade

Bruno Janegitz, coordenador da pesquisa e professor da UFSCar, conta que todo o processo até os primeiros resultados relevantes durou cerca de um ano e meio. Embora considere difícil fazer projeções de como seria a aplicação no mercado em geral, Janegitz comenta que o preço de custo do equipamento tende a ser muito baixo, ficando em torno de R$ 5 por unidade. Além disso, ele destaca a facilidade de uso do sistema. "Hoje, nós temos aparelhos bem em conta que também podem ser encaixados nesse sensor de cortiça, o que facilitaria a montagem. Já existem baterias, por exemplo, muito baratas que podem servir como fonte de alimentação e apenas serem conectadas, o que também ajuda no transporte."

O professor Janegitz reforça que, no estudo, publicado na revista Microchimica Acta, não foram usadas bebidas que estão no mercado e muito menos se descobriu produtos comerciais contaminados. "O que temos aqui é um protótipo, que mostrou muito potencial de detectar nitrito. Posteriormente, esses sensores de rolha até podem, sim, ser usados em testagens reais, já que o aparelho constatou a substância muito bem."

O identificador de nitrito de sódio à base de cortiça é um dos aparelhos feitos com produtos naturais pelo laboratório comandado por Bruno Janegitz. A equipe da UFSCar também pesquisa equipamentos produzidos com folhas de diversas espécies de árvores, que passam por processos semelhantes de gravação a laser e se tornam caminhos elétricos capazes de perceber substâncias. 

*Estagiário sob a supervisão
de Paloma Oliveto

 

Duas perguntas para

Cyro Chagas, professor doutor da divisão de Química Analítica da Universidade de Brasília (UnB)

Por que o nitrito é utilizado em bebidas adulteradas?

Esse composto pode estar sendo aplicado como conservante da bebida, um uso proibido do nitrito. Algumas bebidas até têm adição de sais químicos para aumentar a durabilidade, como os vinhos, que recebem sulfitos para se conservarem por mais tempo. Mas, nesses casos, o uso é autorizado. Já a mistura com nitrito pode indicar adulteração ilegal nos líquidos. É mais provável que esse produto seja usado com objetivo de conservação porque como é um fixador de cores avermelhadas, não faria muito sentido que fosse aplicado para intensificar ou mudar a cor de bebidas como suco de laranja e água mineral, os itens testados no estudo da UFSCar.

Há viabilidade do sensor para testagens na prática?

Até por já ter experiência com detectores à base de eletrodos de baixo custo, acredito que a grande questão para o aparelho com cortiça ter uso comercial é saber se há condições de reprodutibilidade. É um desafio criar equipamentos padronizados quando se usa materiais naturais, como a cortiça, de ponto de partida. Porque ela sempre vai ter, por exemplo, poros diferentes de uma peça para outra. Acredito que vários sensores poderão ser desenvolvidos no futuro, até considerando que o cenário científico para isso hoje está mais estruturado. A academia aprendeu a lidar melhor com a inovação, com mais empresas e startups. O nosso grande desafio é tirar as ideias da bancada e levar para o mercado. Ou seja, retornar a pesquisa para a comunidade e, com isso, melhorar a vida do brasileiro de alguma forma, se integrando ao Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo. (AA)


 

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