
Juliana Cezar Nunes — especial para o Correio
No corpo de Lenna Siqueira, a dança começou em casa, quando o pai transformou a sala simples da família em uma ONG com aulas gratuitas para a comunidade de Cinco Marias, na Zona Oeste do Rio. Era um gesto simples — um tambor improvisado, um chão de cimento que virava palco —, mas o suficiente para acender o fogo de uma menina que, aos oito anos, já sabia o que queria ser: bailarina. O sonho, que nasceu em uma casa aberta à vizinhança, espalhou-se pelo mundo.
Hoje, Lenna dança e dirige. Licenciada pela Faculdade Angel Vianna, pós-graduada em metodologia da dança clássica e em produção cultural e entretenimento, ela se tornou uma das principais referências da dança afrocontemporânea no Brasil. Mas carrega consigo a lembrança daquele primeiro gesto do pai — abrir espaço. É isso que ela faz quando cria a plataforma Ngangudance, quando leva aulas populares ao Centro de Dança do DF, quando organiza o Intercâmbio de Dança Angola e Brasil (Idaeb) ou quando dirige o festival Corpus Convida, que valoriza artistas locais e celebra a cultura negra e popular do Cerrado.
Ao lado dela, o angolano Dillo Paulo compartilha esse mesmo chamado ancestral. Ele cresceu ouvindo as histórias de guerra que o avô contava em Luanda e descobriu, ainda menino, que podia transformar dor em movimento. "Queria dançar para contar histórias", lembra. Em 2011, foi reconhecido como o melhor bailarino de Angola. Depois veio o Brasil, a graduação em dança na Angel Vianna, a pós-graduação em artes, e a coragem de fundar, junto com Lenna, a Companhia Afro Contemporânea Corpus Entre Mundos — nome que parece definir o que os dois são: pontes entre continentes, entre tradições, entre tempos.
A companhia, sediada em Brasília, é uma constelação em movimento. Em 2025, percorreu o mundo com a força de quem tem raiz profunda e se move com a fluidez das águas. Passou por Luanda, Madri, Paris, Campinas, Rio, Ceará, Cariri. Levou oficinas, apresentações e residências artísticas, sempre com o mesmo propósito: fortalecer o diálogo entre Brasil, África e Europa a partir da dança negra contemporânea. Em cada viagem, uma troca. Em cada corpo, uma história de resistência.
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No palco, o gesto é político. Cada passo de Lenna e Dillo desafia séculos de silenciamento. Quando eles erguem o corpo, é o corpo negro que ocupa o centro da cena — não como símbolo de dor, mas como potência criadora. É arte e afirmação, é ancestralidade e futuro.
Lenna, que começou nos corredores da Escola de Dança Maria Olenewa, no Theatro Municipal do Rio, dançou em palcos gigantes — nas Olimpíadas, no Rock in Rio, na abertura do Fantástico, na direção coreográfica de Lucy Alves e no show da Iza. Mas é na roda, no encontro com outros artistas, que sua dança pulsa mais viva. "O despertar pela arte nunca mais morreu", diz ela.
Dillo, que passou pela companhia de Deborah Colker, carrega a mesma vibração de travessia. Dirige espetáculos, dá aulas, produz, idealiza. No site Ngangudance, ele e Lenna reúnem mais de 200 videoaulas acessadas de vários países — um terreiro digital onde o movimento é compartilhado como se compartilha um canto ancestral.
Em 2025, a Corpus Entre Mundos também foi destaque na Bienal de Dança de São Paulo, na Semana da Dança do Cariri e no MIC Ceará, encerrando o ano em um encontro com elenco da companhia em Angola. Para 2026, já estão aprovados novos projetos pela Funarte e pelo Fundo de Apoio à Cultura do DF, além de uma residência em Madri.
Tudo isso compõe a história de dois artistas e produtores culturais negros que reinventam a cena da dança no Brasil. Eles não esperam ser convidados — criam seus próprios espaços, constroem redes, circulam, formam, inspiram.
No mês da Consciência Negra, a trajetória de Lenna Siqueira e Dillo Paulo ecoa como corpo em movimento contra o apagamento. Eles dançam o que o país ainda reluta em enxergar: a potência negra como força que sustenta a arte, a cultura e a própria ideia de futuro.
Quando o tambor começa, é o tempo que se dobra. Entre mundos, eles seguem — abrindo caminhos para que outras meninas de Cinco Marias e outros meninos de Luanda descubram, no corpo, a liberdade de contar suas próprias histórias.

Revista do Correio
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