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O preço da produtividade: seria o burnout o mal do século?

Cansaço, angústia e vazio. O burnout é muito mais do que uma fase ruim no trabalho, é um quadro que pode levar embora a alegria e fazer com que o indivíduo se sinta perdido. O Brasil ocupa o segundo lugar entre os países com mais casos no mundo

Esse quadro surge quando a pessoa passa a ignorar seus próprios limites -  (crédito: Freepik/ Dragos Condrea)
Esse quadro surge quando a pessoa passa a ignorar seus próprios limites - (crédito: Freepik/ Dragos Condrea)

Torcer para que a sexta-feira se aproxime é o desejo daqueles que almejam o descanso de mais uma semana de trabalho. É a chegada do happy hour e do lazer na companhia de amigos e familiares. Enfim, é sábado e domingo. Longe das demandas de trabalho, é o momento preferido para o descanso mental. Mas o que acontece com os profissionais que não conseguem se desvencilhar? Muitos, inclusive, temem a chegada da segunda-feira ao ponto de terem crises de ansiedade. Isso é o que acontece quando o burnout aparece.

Embora não seja uma doença inédita, a síndrome de esgotamento profissional tem alcançado milhões de pessoas ao redor do mundo, sobretudo no Brasil, que ocupa o segundo lugar entre os países que mais têm casos de burnout, perdendo apenas para o Japão, onde 70% da população lida com o problema, conforme estudo divulgado pela International Stress Management Association (Isma), em 2023.

Dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt) mostram que cerca de 30% das pessoas que trabalham no Brasil sofrem com esse quadro e, no início deste ano, o burnout entrou na lista de doenças ocupacionais no país. A mudança faz parte da nova Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (OMS) e valida ainda mais a síndrome, responsável por inúmeros afastamentos profissionais e aposentadorias, como um problema de saúde pública. 

No entanto, ao contrário do que muitos pensam, essa condição vai muito além do que só "uma fase ruim no trabalho". De acordo com Denise Milk, psicóloga e especialista em saúde mental no trabalho, o burnout nasce quando o corpo pede socorro e a mente já não consegue mais fingir que está tudo bem, especialmente depois de um período no qual o indivíduo começa a se sentir sobrecarregado.

"Conhece aquela sensação de estar esgotado o tempo todo, mesmo depois de um final de semana de descanso? Ou de ir trabalhar com um nó na garganta e a mente carregada, sem motivação? Esses podem ser os primeiros sinais, uma síndrome de esgotamento físico e emocional causada por estresse crônico no próprio emprego", explica. Diferentemente do cansaço comum, que melhora com uma boa noite de sono, o burnout é mais profundo. 

Segundo a especialista, ele se instala devagar, mas vai consumindo a energia, a motivação e até a alegria de viver. "Esse quadro surge quando a pessoa passa a ignorar seus próprios limites, tentando dar conta de tudo, sem parar, sem ajuda e, muitas vezes, sem reconhecimento. Ambientes de trabalho muito exigentes, com pouca autonomia e pouca empatia, aumentam muito o risco", destaca Denise.

Luz no fim do túnel

"Você não pode se curar se ficar no mesmo lugar que te adoeceu." Esse foi o lema usado por Tatiana Felix, 46 anos, para tentar superar o burnout, que apareceu em sua vida em 2019. Atuando na área hospitalar, como fisioterapeuta, enfrentava diversos dilemas quanto à profissão que tinha escolhido exercer. Cerca de 70 horas semanais, uma chefe autoritária e uma rotina que passou a perder o sentido, especialmente com o fardo nos ombros crescendo cada vez mais.

"Comecei a sentir dor no peito, tive duas síncopes, uma delas voltando do trabalho. Pensava que era algo cardíaco e realmente tinha uma alteração pequena, mas demorei muito a descobrir. As coisas foram piorando e o trabalho, que eu amava, era leve, virou um calvário. Sentia dor no peito e palpitações dirigindo, indo para o trabalho. Fui várias vezes chorando e dirigindo, pensava em sofrer um acidente para a angústia acabar", relembra.

De fato, nada mais era como antes. Tatiana perdeu a alegria, não havia propósito ao acordar para viver os dias. Passou a ter lapsos de memória e dificuldade cognitiva. "Todos diziam que eu não estava bem, mas eu achava que dava conta", confessa. Até que um momento em específico fez tudo mudar. Em um atendimento de emergência, ela simplesmente paralisou. Não conseguia sair do lugar, e isso fez com que outra colega a substituísse no trabalho, no meio de um procedimento.

Nesse dia, Tatiana percebeu que precisava de ajuda. "Senti aquela angústia de novo, náuseas, dor no peito. Quando saí do plantão, peguei o carro e tive um apagão, não sabia onde estava nem como chegar em casa. Fiquei desesperada. Liguei para o meu marido e saí dali direto para o médico. Fiquei internada por 24 horas e suspeitaram de uma doença neurológica, até que me mandaram para o psiquiatra. Lá, eu só chorava e dizia que não conseguia mais", ressalta.

A psiquiatra, então, diagnosticou: era mesmo burnout. Tatiana ficou 60 dias afastada e teve de tomar remédios psicotrópicos. Além disso, estava semanalmente nas terapias e derramou muitas lágrimas até voltar a sorrir novamente. "A área de saúde é cruel, pesada, lidar com dor e sofrimento. Sempre sobrecarregados", conta. E diante de tanto peso, também se sentia insuficiente, como se não tivesse competência e capacidade para continuar trabalhando.

Hoje, ela reconhece que o caminho tem sido difícil, mas que há, sempre, uma luz no fim do túnel. Vê evolução em todo esse árduo processo e afirma que sem uma boa rede de apoio não teria saído daquele lugar de angústia e paralisia. "Pedi demissão de um emprego que amava, era concursada e estava lá há 11 anos. Escolhi ter saúde mental. Agora, trabalho somente em um lugar e, mesmo precisando de dinheiro, evito exageros de plantões. Tenho vida social e busco constante contato com a natureza", acrescenta.

Precarização, obsessão e vazio

No fim do ano passado, um estudo divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou que a obsessão por riqueza está fazendo com que doenças como depressão e ansiedade cresçam ao redor do mundo. Olivier De Shutter, autor do relatório Economia do burnout: pobreza e saúde mental, afirma que a precarização do trabalho é um fator de risco e agravante para o surgimento de doenças mentais, sobretudo com a alta demanda de trabalho e profissionais que devem estar "basicamente disponíveis sob demanda".

Essa lógica, de acordo com ele, impossibilita o equilíbrio entre vida social e a profissão que o indivíduo exerce. O relator também ressaltou que os trabalhadores de aplicativos e plataformas digitais são os mais impactados por essa realidade. No Brasil, esse contexto não é nem um pouco diferente, uma vez que cerca de 32 milhões de brasileiros atuam com autônomos, de modo informal, ou trabalham sem carteira assinada, em diversos setores privados.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que trouxe esses dados no mês passado, os números revelam a dimensão da precarização do trabalho a nível nacional, além do enfrentamento ao subemprego e à informalidade. Fato que também se correlaciona ao quanto o brasileiro precisa se esforçar para garantir que haja comida dentro de casa. Este ano, por exemplo, uma pauta que ganhou força foi o fim da escala 6x1, na qual o indivíduo precisa cumprir uma jornada de seis dias trabalhados — tendo apenas uma folga por semana.

Para Carlos Manoel Rodrigues, professor de psicologia do Ceub, escalas como a 6x1 tendem a ser extremamente prejudiciais, pois impõem desgaste físico e mental sem tempo suficiente para recuperação. "A escala 4x3 (quatro dias de trabalho e três de folga) pode oferecer mais equilíbrio, desde que os dias de trabalho sejam organizados de forma a permitir pausas e respeitar os limites. Caso contrário, o risco de burnout permanece, pois não é apenas a escala que importa, mas
também o ritmo e a estrutura do trabalho", detalha.

Na visão do especialista, buscar ajuda profissional, como psicoterapia ou avaliação médica, é um passo importante. Paralelamente, é essencial repensar as rotinas e as condições de trabalho, criar espaços de descanso e garantir pausas adequadas. Práticas como atividade física e alimentação saudável também contribuem para a recuperação.

No limite da dor

O funcionário público Juliano (nome fictício), 31, sabe bem o que é precisar ficar distante para ficar bem, já foi afastado de suas funções duas vezes. Em 2023, passou seis meses fora; em 2024, foram necessários nove meses de recuperação. Tudo começou com o início do trabalho remoto, na pandemia. Com horário para entrar, Juliano não tinha hora para sair. A sensação era que estava sempre trabalhando, afinal, chegava a receber mensagens de gestores depois das 22h e antes das 7h. 

O diagnóstico veio em 2023, quando os distúrbios de sono atingiram o limite. Quando chegava o domingo, ele já não conseguia dormir com crises de ansiedade sabendo o que poderia esperá-lo durante a semana. Para conseguir descansar, sob orientação médica, começou a tomar uma medicação forte para dormir. Mesmo fazendo acompanhamento, as crises eram tantas que passou a tomar cada vez mais comprimidos, desenvolvendo um vício medicamentoso. 

Tantos eram os dilemas que maltratavam o emocional de Juliano, mas o que o deixava nervoso era a iminente volta ao presencial, onde sentia que seria julgado por suas questões de saúde mental. "Precisaria que a empresa tivesse um olhar mais humanizado com relação às doenças mentais, a gestão é muito tradicional e não leva a sério esse tipo de problema de saúde, muitos acham que é frescura", comenta. Ele lembra o caso de uma colega, que teve uma crise nas dependências da empresa e passou, inclusive, a ser conhecida como "a louca". Mesmo dois anos depois, todos ainda se referem a ela dessa maneira. Um dos seus grandes medos também é ser exposto e julgado da mesma forma.

Juliano enxerga a necessidade de que as gestões passem a se preocupar mais com esses aspectos, fazendo palestras, treinamentos e aprendendo a lidar e fornecer rede de apoio para os funcionários. Juliano também chama atenção para o fato de que o afastamento é necessário para a recuperação, mas não é a solução do problema. "Você fica afastado para se curar, mas quando volta está exposto de novo a todos os problemas que te afastaram em primeiro lugar. É óbvio que as chances de acontecer são altas", ressalta. 

Entre crises e terapias

Assim como Juliano, a servidora pública federal Cecília (nome fictício), 36, começou a apresentar os primeiros sinais de burnout durante a pandemia. Trabalhando presencialmente das 8h às 18h, passou a exercer as funções remotamente e, apesar de continuar entrando no início da manhã, não tinha hora para acabar. As demandas e mensagens continuavam chegando até as 21h. Depois de quase um ano vivendo assim, começou a ter crises de pânico todas as vezes que ouvia a notificação do WhatsApp. 

"Eu começava a suar, o coração acelerava, ficava com a visão turva. Parecia que ia morrer, ter um ataque cardíaco. Então, resolvi buscar ajuda", lembra. Em 2021, Cecília começou um tratamento com psiquiatra, que, além de afastá-la por dois meses, indicou uma terapia medicamentosa e acompanhamento psicológico. As histórias de Cecília e Juliano são semelhantes, infelizmente as coincidências não se limitam aos dois. Elas foram e têm sido a realidade de muitos trabalhadores brasileiros.  

Atenção aos sintomas 

— Cansaço constante, que não melhora com o descanso.

— Irritabilidade, impaciência e sensação de estar no limite.

— Falta de concentração e queda no rendimento.

— Distanciamento emocional: a pessoa começa a se sentir desconectada do trabalho, das pessoas e até de si mesma.

— Problemas físicos, como insônia, dores no corpo e queda de imunidade.

Fonte: Denise Milk, psicóloga e especialista em saúde mental no trabalho

AC
postado em 15/06/2025 06:00 / atualizado em 15/06/2025 14:25
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