Cidade Nossa

Cidade Nossa: Muito artificial

Em uma reflexão sobre novas tecnologias, o jornalista Cláudio Ferreira fala sobre a importância de dosar a arte humana com as novas ferramentas de inteligência artificial

REV-2704-CRONICA -  (crédito: Maurenilson Freire)
REV-2704-CRONICA - (crédito: Maurenilson Freire)

Reconheço que sou uma pessoa resistente às novas tecnologias. Elas precisam se aproximar com cuidado, flertar comigo, demonstrar interesse genuíno e, aí, a gente vê se vai rolar alguma coisa. Foi assim com aplicativo de banco, por exemplo. Minha próxima meta é ter mais intimidade com os serviços de streaming de música.

Muitas vezes, no entanto, as novas tecnologias me intimidam. É o que acontece com a inteligência artificial, IA, para os mais íntimos. Percebo que ela chegou pra ficar, está se espalhando rapidamente em diversas áreas e tem imensas vantagens. Pode, por exemplo, economizar horas de trabalho braçal na consulta a acervos imensos — a busca é rápida e tudo vem resumido, pronto para ser adaptado para os diversos objetivos. Ainda não sou adepto, mas estou querendo aproveitar o que ela tem de melhor.

Por outro lado, a IA também está mostrando suas garras afiadas. Diariamente, vemos notícias de conteúdo falso produzido com facilidade. Imagens são adulteradas, vozes são imitadas e mensagens são inventadas com perfeição. Tudo em nome de propósitos escusos, que atingem pessoas famosas e gente anônima nas redes sociais. É aquela história da dose da substância, que fica na fronteira entre o remédio e o veneno.

Torço para que o equilíbrio chegue rapidamente. Usar a tecnologia para o mal não é novidade, estão aí os golpes pela internet, com sua diversidade espantosa e cruel. O que assusta é a perfeição milimétrica para criar o que vai atrapalhar tanto a vida das pessoas. A dúvida que a gente tem quando está diante de uma proposta que pode ser um golpe — e que nos salva de muitas "roubadas" — pode desaparecer por completo.

Além das falsificações, também me preocupo com outros usos da ferramenta. Já vi que a inteligência artificial não consegue criar se não tiver repertório para isso — mas pode modificar o que já foi criado. Aí é que mora o perigo. Outro dia ouvi no rádio um exemplo: a IA mudou totalmente o estilo de uma canção, tirou um instrumento, colocou outro...Vale a pena? Não seria um desrespeito com o criador original?

Assistindo a um programa de TV no fim de semana, percebi com estranheza uma busca pela perfeição. Uma dupla sertaneja participava de uma gravação ao ar livre, em uma fazenda. O detalhe era o som perfeito, como se a cena fosse feita em estúdio. E nada de barulho externo: nenhum passarinho, um avião ao longe, uma água correndo. Tudo muito artificial. Conclusão: já não dá para acreditar na imagem que se vê e no som que se ouve. Tudo pode ser produzido ou retirado.

Sendo assim, precisamos cuidar de manter o improviso, o inusitado, o criativo, o que está fora dos padrões. É isso que torna a arte humana, já que o ser humano está longe da perfeição. Para além da arte, uma vida sem falhas e sem acasos deve ser muito estranha. Espero que não cheguemos a isso — ou que eu não esteja mais aqui para ver.

CF
postado em 27/04/2025 07:00
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