
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, avalia que há uma correlação de forças "muito desigual" entre os poderes Legislativo e Executivo. Em meio à aprovação, pelo Senado, do PL 2159, que trata da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, e do Projeto de Decreto Legislativo 717, que suspendeu a homologação das Terras Indígenas Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, ambas em Santa Catarina, ela critica as pautas colocadas em prioridade nas casas legislativas. "O Congresso já tem muito claro quais as pautas ele compra e das quais não abre mão por nada. Meio ambiente e territórios indígenas são exatamente as pautas que eles (congressistas) estão convictos de que querem atropelar", afirma Sonia ao Correio.
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Com a proximidade da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), Sonia reafirma a importância da participação dos povos indígenas no evento que ocorrerá em novembro, em Belém. A ministra lembrou que o Acordo de Paris, que completa 10 anos, reconhece a importância dos povos indígenas no enfrentamento das mudanças climáticas e frisa que a chamada Zona Azul — espaço onde vão ocorrer as negociações e os encontros diplomáticos da COP — deve receber mil indígenas do Brasil e de outras partes do mundo. "Nós vamos conseguir, de fato, ampliar a presença originária para que sejamos protagonistas", diz. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
Lideranças indígenas afirmam que não faz sentido a COP ocorrer na Amazônia sem a participação dos povos indígenas. Como está a expectativa para o evento?
Não faz sentido mesmo ter uma COP30 sem a participação dos povos indígenas. Acho que isso é uma posição geral dos povos indígenas enquanto movimento, mas também do Ministério dos Povos Indígenas. Eu sou uma das grandes motivadoras e defensoras para que a COP30 consiga compreender os povos indígenas como protagonistas nesse debate. Então, nós estamos com uma grande expectativa de aumentar a participação indígena. Aumentar em quantidade, mas também em espaço de incidência.
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De que forma isso está sendo feito?
Nós, enquanto Ministério dos Povos Indígenas, temos feito uma incidência muito grande junto à Presidência para que possamos ter a maior e melhor COP em participação e protagonismo indígena. Até agora, na história das COPs, o maior número de povos indígenas foi de uma média de 300 indígenas do mundo inteiro, na COP28, em Dubai. E agora nós estamos trabalhando com a expectativa de mil indígenas credenciados para a Zona Azul, sendo 500 do Brasil e 500 de outras partes do mundo. Fora isso, nós temos vários outros espaços. Estamos apoiando essa preparação para os indígenas chegarem lá e participarem junto à Cúpula dos Povos, na COP Indígena, na Zona Verde. E também temos um espaço de articulação internacional. Foram criados os círculos da economia, liderado pelo ministro Fernando Haddad; círculo do balanço da ética global, presidido pela ministra Marina Silva; círculo de ministros de relações exteriores; círculo de ex-presidentes da COP; e o Círculo dos Povos, que será presidido por mim. Dentro desse círculo, nós teremos a comissão internacional que vai trazer representações indígenas das instâncias já constituídas do movimento indígena internacional. Nós estamos completando 10 anos agora do Acordo de Paris, que reconheceu o conhecimento dos povos indígenas como conhecimento científico e, agora, conseguimos, de fato, ampliar essa presença e fazer essa movimentação para que sejamos protagonistas.
Os mil indígenas que estão credenciados para a Zona Azul representam todos os biomas do Brasil?
Com certeza. Essas indicações virão do próprio movimento indígena. É um trabalho que está sendo feito de forma muito dialogada. Estamos realizando o Ciclo COParente, que está indo em todas as regiões fazer essa formação e levar as informações. Cada organização estadual ou regional vai escolher os seus representantes. Já realizamos o Ciclo COParente no Pará, em Pernambuco, com as representações de todos os estados do Nordeste, em Santa Catarina com os três estados do Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste, fizemos duas em Mato Grosso do Sul, considerando o conselho Terena e o Aty Guasu. No começo de julho, nós vamos começar a etapa da Amazônia, onde vamos realizar ao menos uma por estado. Nessas preparatórias, as lideranças definem quem serão seus representantes para o credenciamento na Zona Azul, o que não impede que outras lideranças também participem em outros espaços.
Qual a diferença entre a Zona Azul e a Zona Verde?
A Zona Verde contempla a participação da sociedade civil. Todas as pessoas podem se credenciar e participar ali diariamente. A Zona Azul é um espaço que tem as salas mais restritas para negociações. Quem entra são os diplomatas, negociadores dos textos e dos documentos que serão decididos na COP30.
Qual é o papel dos povos originários no contexto das mudanças climáticas?
Comprovadamente, os territórios indígenas ou os lugares que são habitados por indígenas são os mais preservados. E isso não se dá por coincidência, mas sim pela relação que os povos indígenas têm com o meio ambiente. Essa relação harmoniosa e o uso sustentável da terra, dos recursos naturais. Proteger os povos indígenas é proteger o meio ambiente e, assim, trazer essa grande contribuição para o enfrentamento à crise climática. E como o acordo de Paris já reconhece os povos indígenas como detentores de saberes tradicionais que contribuem para o combate à crise climática, é muito importante que eles tenham seus direitos garantidos. É por isso que uma das bandeiras que nós estamos defendendo e articulando no âmbito da COP é a demarcação dos territórios indígenas. Estamos nesse debate junto ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima para que a demarcação também seja incluída nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). São 10 anos de Acordo de Paris, mas, ainda hoje, as florestas não entraram nos compromissos firmados pelos países como uma das medidas efetivas de combate à mudança climática.
O que a senhora pensa do PL da Devastação?
O PL 2159 é totalmente inaceitável e contraditório a tudo o que se precisa decidir e adotar para proteção do meio ambiente. Ele vai flexibilizar muito mais todo o processo de licenciamento ambiental, facilitando a exploração, a instalação de empreendimentos, facilitando inclusive a grilagem de terras que tentamos combater, porque cada um pode se declarar dono de uma área pública. Então, é um risco muito grande, inclusive, de flexibilizar territórios indígenas já demarcados. O governo não concorda com esse PL, o ministério tem feito também grandes diálogos aqui dentro e com parlamentares no Congresso.
Como avalia a relação entre o Executivo e o Legislativo?
Todo mundo há de convir que há uma disputa muito grande, uma correlação de forças muito desigual entre o Executivo e Legislativo. E tem pautas que não são por falta de incidência do governo federal. É porque o Congresso já tem muito claro quais as pautas que ele compra e das quais não abre mão por nada. Meio ambiente e territórios indígenas são exatamente as pautas que eles (congressistas) estão convictos de que querem atropelar. Fazemos o nosso trabalho, mas não temos força para enfrentar essa maioria do Congresso.
Analistas políticos comentam que há um "abandono" por parte do presidente Lula de alguns ministros. Eles citam o caso de Marina Silva na luta contra o PL da Devastação e de Fernando Haddad na questão do IOF. A senhora se sente lutando sozinha pelos direitos indígenas?
Acho que não é você se sentir só ou não, é você realmente entender a realidade que nós temos. O Congresso Nacional tem uma maioria ampla para estar enfrentando o governo, e eles seguem fazendo isso com as pautas que eles consideram irrecuperáveis, estando o presidente ou não fazendo essa incidência.
Há alguma expectativa de demarcação de terras ainda para este ano?
Nós temos a Lei nº 14.701, que está no Supremo Tribunal Federal para se ter uma posição, e com ela vigente é muito difícil avançar com o processo demarcatório. Já homologamos 13 territórios indígenas dos 14 que estavam previstos. Desses 13, tivemos a judicialização de dois, Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, que foram para o Supremo. Temos também o Projeto de Decreto Legislativo nº 717/2024, que foi apresentado pelo Senado, nesses últimos dias, e tenta anular o decreto do presidente Lula sobre essas homologações, como traz o artigo 2 do Decreto 1775, que é exatamente o artigo que garante e orienta o rito demarcatório. Com tudo isso tramitando no Senado, já indo para a Câmara dos Deputados, fica difícil somente fazer vista grossa, assinar outras terras indígenas e ter o mesmo risco de haver esse questionamento e tentativa de anulação, como está acontecendo com esses dois. Então, precisamos também ter coerência com a conjuntura política e ver os melhores caminhos para avançar com esse processo demarcatório.
Sobre a lei de cotas para o serviço público, sancionada recentemente, quais políticas o governo pretende adotar para torná-las um instrumento efetivo de inclusão?
A aprovação dessa lei teve uma participação muito forte do Ministério dos Povos Indígenas, com o Ministério da Igualdade Racial, entendendo que é uma política afirmativa, que é uma forma de garantir o acesso dos povos indígenas, como fizemos no ano passado para o ensino superior e agora também no mercado de trabalho. O concurso da Funai foi uma experiência importante para que os indígenas pudessem acessar, por meio de cotas, as vagas. Ainda é muito novo para nós essa inserção no serviço público. Um exemplo foi a criação do Ministério dos Povos Indígenas, quando tivemos dificuldade de formar o quadro com pessoas que já tivessem experiência. Mas foi um passo importante. As pessoas puderam tanto exercitar isso quanto motivar outras a virem.