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"Tá com pena? Leva pra casa": expressão de insensibilidade ou de exaustão e vulnerabilidade?

Expressões como "Tá com pena? Leva pra casa" talvez não revelem simplesmente uma falta de empatia, mas, antes, um indicativo de proximidade com a violência

PRI-0111-BRASILIADF -  (crédito: maurenilson)
PRI-0111-BRASILIADF - (crédito: maurenilson)

Anna HartmannMestre em sociologia pela USP e sócia-administradora da ARA, consultoria política

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A expressão "Tá com pena? Leva pra casa" tornou-se um dos bordões mais emblemáticos e polêmicos das discussões cotidianas sobre segurança no Brasil. Usada com frequência contra membros das camadas médias urbanas e escolarizadas — geralmente aqueles que defendem soluções de longo prazo e políticas sociais estruturantes enquanto criticam operações policiais violentas —, a frase talvez, à primeira vista, pareça indicar somente uma falta de empatia de quem a profere. Mas será que, na verdade, ela também não carrega uma acusação de que quem defende "soluções de longo prazo" o faz muitas vezes porque está distante, geográfica e psicologicamente, do fenômeno da violência?

Norbert Elias, sociólogo alemão que analisou a formação dos Estados modernos, afirma em O processo civilizador que, à medida que o Estado foi concentrando o controle da violência e as sociedades europeias se tornaram mais pacificadas, seus habitantes passaram a sentir repulsa diante da violência e da morte, reagindo com horror àquilo que antes lhes era familiar. Essa repulsa é o produto de uma longa socialização emocional, na qual os indivíduos se distanciam tanto da violência que passam a concebê-la como um problema moral, e não como parte imediata da vida.

Podemos pensar, então, que o subtexto da expressão "Tá com pena? Leva pra casa" seria o de que se quem propõe soluções de longo prazo para o crime organizado vivesse sob o domínio das facções, se o problema dessa violência fosse "levado para dentro de sua casa", veria a segurança pública menos como um tema abstrato e mais como uma ameaça concreta de urgência inadiável.

A pesquisa da Atlas Intel sobre o apoio às operações no Rio de Janeiro reforça essa percepção: 87% dos moradores de favelas da cidade apoiaram as recentes operações policiais, contra 55% do restante da população. Em nível nacional, 80% dos moradores de favelas apoiaram as ações, ante 51% fora delas. De fato, quanto mais próxima a pessoa está da violência das facções, maior tende a ser o apoio à repressão policial.

Em O processo civilizador, Elias descreve o longo processo de transformação emocional que levou certas nações a internalizar o horror diante do sangue e da força física, destacando que, para que esse processo ocorra, é fundamental que o Estado assegure a integridade física de seus cidadãos. No Brasil contemporâneo, contudo, parece ocorrer o movimento inverso: a percepção de que o Estado tem falhado em manter o controle da violência, e o sentimento difuso de medo vêm se expandindo, sobretudo em grupos sociais que antes viviam relativamente mais protegidos da experiência direta da insegurança.

 De acordo com uma pesquisa do Datafolha realizada em abril deste ano, 58% dos brasileiros afirmam perceber aumento da violência e da criminalidade, percentual que sobe para 64% entre aqueles que ganham mais de 10 salários mínimos. É natural supor que, à medida que o medo se generaliza, parcelas da sociedade que estavam mais distantes da violência passem a percebê-la cada vez mais como uma ameaça concreta. Esse deslocamento tende a gerar, simultaneamente, uma pressão por medidas repressivas rápidas e um ressentimento crescente em relação a discursos que privilegiam soluções de longo prazo.

É verdade que políticas de segurança pública não são bem construídas quando baseadas exclusivamente em emoções. Quanto mais um tema mobiliza medos e sentimentos profundos, maior tende a ser o espaço para respostas populistas e eleitoreiras que, mesmo sem oferecer soluções e, por vezes, agravando os problemas, tornam-se atraentes para quem tem medo porque parecem validar e acolher sentimentos de vulnerabilidade, sentimentos que se percebem negligenciados por discursos que focam "em soluções de longo prazo" e veem manifestações de raiva como sinais de "insensibilidade" ou ignorância. 

Nesse sentido, uma política coerente e eficaz passa por reconhecer que grande parte da população, de todas as classes sociais, vê-se como vítima do crime organizado e da violência urbana, entende os criminosos como seus algozes e deseja soluções rápidas e eficazes. Assim, é útil compreender que expressões como "Tá com pena? Leva pra casa" talvez não revelem simplesmente uma falta de empatia, mas, antes, um indicativo de proximidade com a violência. 

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Por Opinião
postado em 09/11/2025 06:00
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