
Eugenio Zaffaroni — foi juiz da Corte Suprema Argentina e da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Guido Croxatto — pesquisador da Universidade de Buenos Aires e do Conicet
É lamentável termos de voltar a chamar a atenção para um fato tão grave que, desde 2009, se converteu em costume: nossa região volta a ter um presidente constitucional, um presidente legítimo, mal destituído, mal detido, arbitrariamente preso. A saga que começou com a detenção de Manuel Zelaya em Honduras, em 2009, e se estendeu por todo o continente sul-americano — alcançando sua máxima expressão com a prisão de Lula e o exílio de Evo Morales — tem hoje um novo protagonista, ainda invisibilizado: Pedro Castillo.
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Assim como Zelaya, Castillo buscou reformar a Constituição de seu país. Não o deixaram. Foram necessários mais de 100 dias para reconhecerem sua vitória. Os opositores diziam que "os índios (que o haviam eleito) não sabem votar". No Peru, subsiste uma discriminação histórica dos setores da costa contra os setores da serra, aos quais pertence Castillo, professor rural (e primeiro presidente oriundo do campo na história peruana). Após o reconhecimento de sua vitória, jamais lhe permitiram exercer plenamente as funções de governo, muito menos promover a reforma constitucional para incorporar a cota indígena no Congresso, como havia prometido.
As irregularidades jurídicas se aprofundaram: Castillo foi destituído de forma ilegal, com menos votos que o número mínimo exigido pela lei. Foi preso pela polícia sem que houvesse prévio julgamento político no Congresso. A detenção ocorreu antes da atuação congressual, e não depois, e foi realizada apenas para justificar a posteriori a conduta irregular da polícia. Por isso, é arbitrária.
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Em uma democracia constitucional, a polícia não detém presidentes. Tampouco lhes coloca algemas nem os encarcera sem julgamento político. E, se destituídos — como na Coreia do Sul — após processo de impeachment, este deve contar com todas as garantias do devido processo legal. É imperativo que todas as garantias sejam respeitadas. A Castillo não foi respeitada nenhuma. Nenhuma sequer. O quadro é particularmente grave, pois estão em jogo não apenas os direitos civis e políticos do representante, mas também os de todos os representados, cuja vontade política resta violada, defraudada, negada.
Após a destituição irregular, irromperam protestos. Mais de 60 pessoas foram assassinadas nas ruas. No mesmo período, a França presenciava protestos contra a reforma trabalhista de Macron. Apesar de terem sido muito mais intensos que no Peru, na França não houve mortos. Nenhum ferido sequer. No Peru, dezenas de manifestantes desarmados e pacíficos foram mortos; outros agonizaram por semanas até falecer em hospitais. Suas mortes seguem invisibilizadas, apenas retratadas em retábulos de Ayacucho. As vidas no Peru valem menos que as vidas na França? A Anistia Internacional publicou relatório — cuja apresentação foi censurada pela prefeitura de Lima — indagando: "Quem deu a ordem de atirar?"
Parece que, em nossos países, vigora um direito penal e processual constitucional para as classes altas e outro, bem distinto, para os setores subalternos, empobrecidos e marginalizados. Advogados internacionais não puderam viajar ao Peru para visitar Castillo, pois o país proibiu a entrada de defensores "estrangeiros" em estabelecimentos prisionais.
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Apesar de todas essas medidas arbitrárias, que buscam cercear sua defesa, Castillo continua a ser o único presidente legítimo do Peru. Os demais incorrem no delito de usurpação de funções.
O povo peruano está sendo governado de fato por aqueles que foram derrotados nas urnas. Castillo venceu Keiko Fujimori no segundo turno presidencial de 2022. Oposição firme ao indulto de Alberto Fujimori. Após sua destituição irregular, o governo de fato concedeu o indulto a Fujimori pai, em afronta às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que governa com a anuência do fujimorismo. Hoje, o Peru pretende abandonar o sistema interamericano de direitos humanos, promovendo a anistia de militares condenados por crimes gravíssimos. A mesma prática que Fujimori adotara 30 anos antes. A história, tristemente, repete-se. Nós, juristas, não podemos permanecer em silêncio. O Peru necessita de nossa voz.
A "vacância" com a qual o Congresso peruano afirma ter destituído Castillo obteve apenas 101 votos, quando o regimento do Congresso estabelece de forma clara — e taxativa — que o número mínimo exigido para a validade do ato é de 104 votos. A vacância, portanto, é nula. Carece de qualquer validade jurídica.
Como repetem em alguns poucos bairros ricos de Lima, como Miraflores: um "cholo" não pode ser presidente. Não se trata de questão jurídica. É, antes de tudo — como diria Charles Wade Mills (célebre por suas críticas às teorias ideais de justiça de Rawls) — uma questão racial.
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