
Em tempos de polarização exacerbada, os embates políticos ficam limitados aos fatos que "fogem da curva": sejam eles verdadeiros ou não. Assim, a notícia de um golpe bilionário em assistidos pelo INSS e a invenção de que creches públicas recebem mamadeiras eróticas mobilizam agentes políticos e cidadãos comuns da mesma forma, em uma falta de filtros que atravanca a condução de pautas imprescindíveis para o bom funcionamento do país. Essa agenda deslocada vai além: é cáustica para a convivência democrática, levando a uma espécie de normalização da violência política.
A execução a tiros de Charlie Kirk, nos Estados Unidos, na semana passada, é a prova mais recente de como esse fenômeno contamina o Brasil e o resto do mundo. A troca de acusações sobre as motivações do atirador se deu na mesma velocidade com que as imagens do influenciador sendo baleado no pescoço se disseminaram pelas redes sociais. Um suspeito chegou a ser preso logo em seguida ao crime, e o presidente Donald Trump tratou de inflar a disputa ideológica imediatamente. Culpou a "esquerda radical" por "demonizar aqueles de quem se discorda". O desenrolar das investigações evidenciou que veredictos não podem ser instantâneos.
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Políticos brasileiros e formadores de opinião também compartilharam seus pareceres sobre a morte do jovem conservador estadunidense, repetindo posts recheados de irresponsabilidade e superficialidades argumentativas. Os efeitos, contudo, são profundos. Estudiosos alertam que o extremismo político tem levado a um movimento de desumanização de quem pensa o contrário, ao ponto de se comemorar a morte de oponentes.
"O risco é perdermos a noção do bem comum e naturalizarmos o ódio como linguagem da política. A política deixou de ser vista como vocação ao serviço da comunidade e virou guerra identitária", alertou, em entrevista ao Correio, o mestre em ciência política Felipe Rodrigues. As vítimas estão por toda a parte — dos rincões latinos a democracias mais consolidadas —, expostas em redes sociais que "amplificam o desprezo político mundialmente e criam câmaras de eco que radicalizam posições".
Há de se ressaltar que as questões de gênero e raciais se somam a esse enredo de violências. O Instituto Marielle Franco mapeou 77 casos de violência política de gênero e raça praticados no ambiente digital contra mulheres entre junho de 2021 e julho de 2025. Os resultados do trabalho recém-divulgado indicam que 69% das vítimas se autodeclaram pretas e 71% são parlamentares em exercício. Ameaças e intimidações somam os relatos mais comuns, 71%, sendo a maioria deles ameaças de morte (63%) e de estupro (30%).
Não é exagero, portanto, afirmar que a barbárie toma conta da arena política, impulsionada por quem usa a internet para "interromper trajetórias políticas por meio do terror simbólico, emocional e psicológico", como enfatiza o relatório da pesquisa inédita. Tem-se perdido a capacidade de diálogo em detrimento de práticas covardes que abalam um dos pilares da democracia: o pluralismo.
É preciso estar atento a essa nova roupagem de ameaça aos avanços civilizatórios. Sobretudo no Brasil — que acaba de passar pelo julgamento histórico de um ex-presidente da República, está às vésperas de eleições gerais e vive uma intensa polarização política na última década. Tamanha criticidade exige vigilância à altura.