
CAIO CASTAGINE MARINHO, Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe)
"A ninguém importa mais do que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações e não conhecer covardia. Todo o bom magistrado tem muito de heroico em si mesmo, na pureza imaculada e na plácida rigidez, que a nada se dobre, e de nada se tema. Não hesiteis com asvossas responsabilidades, por mais atribulações que vos imponham, e mais perigos a que vos exponham. Nem receios sobre as soberanias da terra, nem a do povo, nem a do poder".
Assim Rui Barbosa, como paraninfo da turma de 1920, dirigia-se aos bacharéis em direito da tradicional Faculdade do Largo de São Francisco, onde ele próprio se formara meio século antes. O discurso, que se tornaria a célebre Oração aos Moços, converteu-se em uma das peças mais lembradas de sua vasta produção intelectual, sendo constantemente revisitado por juristas,magistrados e estudantes.
Ali, o polímata baiano oferecia um dos conselhos mais valiosos a quem desejasse exercer a judicatura: a justiça não convive com o medo. Julgar exige coragem, firmeza e integridade. A toga, mais do que um símbolo de autoridade, é o peso da responsabilidade. O compromisso do magistrado é apenas com sua consciência livre, mas sempre fundamentada exclusivamente nas leis e na Constituição. Essa é a essência da função jurisdicional: aplicar o direito com imparcialidade, sem se curvar a pressões de maiorias momentâneas, de interesses políticos ou de forças externas.
Não há como dissociar a figura do juiz da ideia de independência. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Penal n.º 2668, demonstrou de maneira inequívoca a força e a maturidade de um Poder Judiciário independente. Não é trivial a missão de julgar um ex-presidente da República acusado de tentar abolir, por meios violentos, o Estado Democrático de Direito. Nenhum juiz se regozija diante de uma tarefa dessa magnitude, porque sabe que ali está em jogo não apenas o destino de um indivíduo, mas a própria solidez das instituições democráticas. Ainda assim, é exatamente esse o dever de ofício: enfrentar os fatos, aplicar a lei e suportar, com serenidade, o peso da toga.
Esse dever se torna ainda mais árduo em tempos de polarização política intensa, quando o debate público se acirra e os ataques às instituições se multiplicam. Somem-se a isso as pressões externas, como sanções de governos estrangeiros contra ministros da Suprema Corte.
Apesar desse cenário adverso, o julgamento da Ação Penal n.º 2668 revelou maturidade, estabilidade e resiliência das instituições nacionais. O processo judicial seguiu seu rito regular, as garantias processuais foram respeitadas e, sobretudo, os cinco ministros da Primeira Turma do STF tiveram plena liberdade para formar suas convicções. Cada um deles pôde se manifestar com independência, em verdadeira demonstração do vigor democrático. Houve convergências e divergências, como deve ocorrer em qualquer colegiado saudável, mas sempre a partir da análise das provas, da Constituição e da lei.
É justamente isso que se espera de qualquer tribunal: independência e autonomia. Esses atributos constituem a base do Estado de Direito. Sem independência judicial, não há julgamento justo, tampouco verdadeira democracia. Como estabelece o primeiro dos Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial, a independência é condição essencial para a existência do Estado de Direito e garantia fundamental de imparcialidade. Cabe a cada juiz preservar essa independência não apenas no exercício da função, mas também em sua conduta pública e privada, servindo de exemplo e sustentando a legitimidade do Poder Judiciário.
Por essa razão, é inadmissível, e jamais aceitaremos, que um magistrado brasileiro seja ameaçado, pressionado ou constrangido em sua missão. Seja um juiz de primeira instância, seja um ministro da mais alta Corte, todos devem atuar com a mesma proteção de sua independência. É ela que assegura que a Justiça não se torne instrumento de poder, mas escudo contra arbitrariedades.
No presente caso, os ministros da Primeira Turma do STF exerceram sua independência de forma exemplar, mostrando que a magistratura não convive com o medo e cumprindo, com integridade e coragem, as responsabilidades que a Constituição lhes impõe.