
Para o bem e para o mal, a internet tornou visível ad aeternum, usando um termo do direito, a narrativa que construímos sobre nós mesmos. Tornamo-nos todos seres autobiográficos e os algoritmos estão aí para nos entregar as melhores e piores versões, a depender dos posicionamentos e de quem se é nas redes. Para pessoas públicas, cada entrevista, cada ato, cada post são gatilhos para ajudar a compor esse perfil de persona, incluindo aí os memes e as fake news. Ninguém está imune; as autoridades, muito menos. Verdade, pós-verdade e mentira caminham juntas.
O julgamento de Jair Bolsonaro e demais réus no Supremo Tribunal Federal foi um no tribunal e outro nas redes? Há muitas respostas a essa pergunta, pois, no deslocamento, a realidade ganha novos contornos e infinitas interpretações. Porém, há verdades e também imagens que são maiores, incontestáveis, perenes.
O 8 de Janeiro rendeu-nos um espetáculo grotesco. Ninguém em sã consciência defendeu aquele ato insano, criminoso, embora muitos tentassem minimizá-lo. Ficou registrado na memória, nos vídeos, nas capas de jornais, no inconsciente coletivo, arrisco dizer que ficou na pele, sobretudo do brasiliense. Até chegar àquele dia fatídico, tivemos outros momentos de vandalismo, de escárnio, de ameaças criminosas à democracia. Houve uma arquitetura do golpe, um projeto, uma tentativa, ainda que frustrada.
Antes ainda, tivemos a sequência horrorosa de negligências do governo Bolsonaro na pandemia, incluindo aí o próprio líder da nação, à época, construindo sua própria persona, fosse imitando uma pessoa sem ar; dizendo que não era coveiro; fosse tripudiando das instituições ou ameaçando a democracia. Tudo isso foi reconstruído, animado, usado como prova, como de fato é.
O resultado do julgamento não se esgota na pena imputada. Transcende para o universo das narrativas que, faz tempo, não são unicamente as jornalísticas. Qualquer um pode dizer o que quiser nas redes. Pode também rir, chorar, orar, celebrar, resgatar as cores da bandeira.
Eu fico com a sequência de posts sobre a ministra Cármen Lúcia, que, não bastasse ter poupado tempo em seu voto, ainda nos brindou com a exigência de respeito ao momento de fala de uma mulher, a única no grande Supremo. Como bem disse, aquele 8 de Janeiro não foi um almoço de domingo. Nunca será e não podemos permitir que assim seja visto.
A despeito do que se tornou a realidade, com tantas nuances, devemos ter nossas cláusulas pétreas para a vida, assim como nossa Constituição. A democracia é uma delas. Todos somos responsáveis por ela.