ARTIGO

A retórica como arma geopolítica: Trump e América Latina

Trump não fala apenas para informar, mas para marcar posição, intimidar adversários e, sobretudo, produzir narrativas capazes de viralizar. Para a diplomacia brasileira, como para tantas outras, o desafio é não entrar nesse jogo

Gestão Trump evidencia que retórica passou a ser instrumento de poder. -  (crédito:  AFP)
Gestão Trump evidencia que retórica passou a ser instrumento de poder. - (crédito: AFP)

DANIEL A. DE AZEVEDO, Professor de geografia política do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)

Nascida no final dos anos 1990, Karoline Leavitt, secretária de imprensa da Casa Branca, impressiona com seus 27 anos e suas falas alinhadas ao presidente dos Estados Unidos. Jovem, carismática e agressiva nas respostas, Leavitt se tornou uma espécie de escudo verbal de Donald Trump diante da imprensa. Seus embates com jornalistas são transmitidos ao vivo e replicados nas redes sociais, reforçando uma imagem de firmeza que ecoa para além das fronteiras norte-americanas.

Na prática, o papel de Leavitt é o de uma porta-voz. Segundo o dicionário Michaelis, porta-voz é "a pessoa que transmite publicamente as palavras ou as opiniões de outrem, transmitindo opiniões, decisões e posições". Ou seja, não se trata apenas de uma mensageira, mas de alguém que encarna, pela voz e pelo gesto, uma estratégia política. No caso atual, essa estratégia é a retórica do confronto: respostas rápidas, frases de efeito, ataques diretos a veículos de imprensa, como o The New York Times. 

Na última semana, em resposta ao questionamento sobre como os Estados Unidos responderiam ao julgamento de Jair Bolsonaro, ela disse, sem preocupação com as implicações: "Os Estados Unidos não têm medo de usar o poder econômico e militar para proteger a liberdade de expressão em todo o mundo". Resta saber se, nesse caso, ela encarnou "apenas" a forma de Trump ou se também vocalizou um conteúdo extremamente perigoso. Afinal, qualquer ação militar direta no Brasil teria consequências sérias não apenas para o país, mas para os próprios Estados Unidos e sua diplomacia na região.

É justamente aqui que a retórica precisa ser contextualizada. Uma coisa é ameaçar a Venezuela, país que acumula críticas internacionais e cuja imagem de "narcoestado" ecoa, inclusive, entre seus vizinhos. Outra, bem diferente, é insinuar pressões sobre o Brasil, a maior democracia da América Latina e um aliado comercial estratégico dos EUA. No caso venezuelano, a retórica dura encontra alguma ressonância internacional. Já no caso brasileiro, a fala parece despropositada e, no limite, contraproducente — ainda mais quando se trata do julgamento de Jair Bolsonaro, um ex-presidente que mantém influência política, mas que não representa oficialmente o Estado brasileiro.

Porém, nesse momento, o que importa não é apenas o conteúdo, mas a forma. Na geopolítica das redes sociais, interessa muito como se fala. Essa combinação — política, espetáculo e redes sociais — coloca Leavitt no centro de uma engrenagem maior. Trump sempre soube explorar a palavra como arma. Entre suas ferramentas discursivas, sempre esteve a "retórica da ameaça", conceito conhecido na ciência política para descrever quando narrativas exageradas ou distorcidas transformam grupos, ideias ou países em inimigos perigosos, manipulando o medo coletivo para justificar políticas específicas. Trump recorre a isso com frequência, sobretudo em relação à imigração e à América Latina. Mas, para além dessa prática, o que se observa hoje é um fenômeno mais amplo: a geopolítica da retórica, em que o modo de falar — potencializado pelo espetáculo midiático e pelas redes sociais — torna-se, em si, um recurso estratégico na relação entre Estados.

Trump não fala apenas para informar, mas para marcar posição, intimidar adversários e, sobretudo, produzir narrativas capazes de viralizar. É um estilo que não se sustenta em relatórios técnicos ou negociações discretas, mas em frases curtas que mobilizam emoções e reforçam fronteiras simbólicas. Para a diplomacia brasileira, como para tantas outras, o desafio é não entrar nesse jogo: é preciso responder com parcimônia, sem se deixar arrastar pela lógica da rede e do espetáculo. O problema é que, paradoxalmente, esse tipo de retórica também funciona para consumo interno, no registro da soberania e da defesa nacional, servindo como ferramenta eleitoral. Nesse cenário, o Itamaraty precisa reafirmar sua condição de instituição de Estado, e não de governo, preservando a política externa como espaço de equilíbrio e não de bravata.

Se a retórica sempre esteve presente na política internacional — basta lembrar de Churchill, Fidel Castro ou Chávez —, o que muda hoje é a velocidade e a escala da circulação. Um trecho de coletiva, um tuíte, um corte em vídeo no TikTok podem se transformar em um acontecimento geopolítico. E é nesse cenário que Karoline Leavitt ganha destaque. Mais do que uma simples porta-voz, ela é o símbolo de uma época em que a retórica deixou de ser mero acessório e se tornou campo de batalha geopolítico. Ao encarnar a voz de Trump, Leavitt nos lembra que, hoje, a retórica deixa de ser apenas ornamento do poder e passa a ser, ela mesma, instrumento de poder.

Por Opinião
postado em 14/09/2025 06:00
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