ARTIGO

Escrevivência sobre o racismo e como tornei-me negro

Nessa jornada que ainda trilho entendi que se torna negro não era somente ser afetado pelo racismo, mas, sim, contagiado por nossas histórias de resistência e resiliência

"Saber-se negro no Brasil é viver a experiência de ser massacrado por uma estrutura que quer te manter subalterno, alienado para a manutenção do status quo, de uma sociedade essencialmente escravocrata" - (crédito: Caio Gomez)

MARCIO CAMILO, jornalista e mestre pelo programa de Pós-Graduação em Comunicação e Poder da Universidade Federal de Mato Grosso

Eu devia ter no máximo uns 11 anos quando fui chamado de "preto safado" e de "frango de macumba" por um vizinho que, de tão branco, sua pele era vermelha. O motivo das ofensas foi porque estava brincando no gramado do condomínio e ele, lá do quarto andar, querendo dormir, escancarou sua janela e seu racismo. Havia outros meninos comigo, fazendo barulho tanto quanto eu. Todos brancos. Sobrou só para mim…

Depois do ataque, saí correndo assustado para casa. Eu tinha medo daquele racista declarado. Medo da confusão que isso poderia gerar, caso resolvesse relatar o episódio aos meus pais. Era muito novo para entender toda a complexidade e gravidade daquilo, num tempo, que por sinal, não se falava de racismo como se fala hoje. Também lembro de ter pensado que a culpa era minha: "quem mandou fazer barulho debaixo da janela do cara…". Assim, tranquei toda aquela dor em meu peito e joguei a chave fora. Só revelei essa história bem mais tarde, quando já estava adulto.

Aquele episódio de racismo na minha infância e tantos outros que se sucederam na minha adolescência e início da vida adulta foram se acomodando dentro de mim, como a estrutura racializada e naturalizada desse país assim o quer. E, assim, fui tocando o barco, sem muito tempo para tensionar as coisas. Era preciso estudar, trabalhar… 

O peso invisível, mas palpável, das microagressões e dos silenciamentos se acumulava, moldando percepções e autopercepções de forma sutil, mas implacável. O racismo estrutural, como tão bem pontua o sociólogo Silvio Almeida em sua obra Racismo estrutural, opera de maneira tão intrínseca à sociedade brasileira que, muitas vezes, manifesta-se não através de atos explícitos de ódio, mas por meio de mecanismos de exclusão e negação que perpetuam a desigualdade. A naturalização dessa condição é um dos seus traços mais perversos.

A tomada de consciência de todo racismo que já havia sofrido na vida só se deu aos 30 anos. Foi aí que me tornei negro. "Torna-se negro" é uma expressão da teórica Neusa Santos Souza. Ele foi vanguardista ao aproximar a psicanálise da questão racial. Em seus estudos na década de 1980, evidenciou o quanto o racismo afeta emocionalmente as pessoas negras. Então, saber-se negro no Brasil é viver a experiência de ser massacrado por uma estrutura que quer te manter subalterno, alienado para a manutenção do status quo, de uma sociedade essencialmente escravocrata. 

Essa experiência de "tornar-se negro" é também um processo de ressignificação. Como aponta a filósofa e psicanalista Sueli Carneiro, fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra, ser negro no Brasil implica lidar com a marca da escravidão e suas consequências, mas também em resgatar a dignidade e a ancestralidade, combatendo os estereótipos negativos impostos pela sociedade.

O meu processo de tornar-me negro foi muito doloroso, porque comecei a puxar na memória episódios ao longo da minha vida que eu nem achava que eram racismo, e eram. Comecei a entender certos comportamentos de insegurança e baixa autoestima da minha parte. Constatei que o racismo tinha muito a ver com isso, tinha a ver com tudo. Era um desvelar de camadas de opressão que se sobrepunham, afetando desde as escolhas mais triviais até as mais profundas construções identitárias. A negação da própria história e a internalização de discursos depreciativos são táticas do racismo para minar a psique negra.

Mas fui à luta como tantos outros pretos: comecei a trabalhar aos 17 anos, completei o ensino médio, fiz faculdade, casei-me, sou pai, sou funcionário público de carreira e mestre em comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Se tem uma coisa que o racismo e essa sociedade escravocrata que ainda vigoram no Brasil nunca conseguirão é definir quem somos. Essa trajetória de vida, comum a muitos, é um testemunho da força e da resiliência da comunidade negra, que, apesar dos obstáculos impostos pela estrutura racista, busca incessantemente o progresso e o reconhecimento.

Nessa jornada que ainda trilho, entendi que se torna negro não era somente ser afetado pelo racismo, mas, sim, contagiado por nossas histórias de resistência e resiliência. 

Então, quando faço essa escrevivência, termo da linguista e escritora Conceição Evaristo se referindo à escrita que cura, não falo só sobre mim. É a partilha de uma vivência coletiva. A escrevivência não é apenas um relato pessoal, mas um convite à reflexão e à ação. A busca por uma sociedade antirracista é uma responsabilidade compartilhada, que exige a desconstrução de privilégios e a edificação de novas relações sociais pautadas pela equidade e pelo respeito à diversidade humana.

 


Por Opinião
postado em 02/08/2025 06:03
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