ARTIGO

A paz contigo

É urgente acabar com a mentalidade da confrontação. Nosso país deve reagir com altivez e equilíbrio, necessários à defesa de nossa soberania e do nosso povo, o maior prejudicado numa guerra econômica

PRI-0108-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0108-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

JOSÉ SARNEY, ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras

O mundo vive uma crise de identidade. Nós, que vivemos estes tempos, estamos sendo submetidos a presenciar o encontro de civilizações, não o fim da história, aquilo que Francis Fukuyama disse quando achou que chegaríamos a uma etapa em que somente dois sistemas prevaleceriam com o decorrer do tempo: o sistema democrático e o sistema de liberdade econômica. Então, diante desse quadro, o que é esta inquietação de viver perigosamente que estamos vendo?

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Na minha opinião, com olhos de análise e de observação, já passamos pela civilização da oralidade, em que a história se perpetuava em nossa memória através, principalmente, dos mais velhos. Depois, com a descoberta da escrita, pela civilização da eternidade da palavra escrita e pela proliferação desta pela imprensa. 

Agora, estamos em pleno vendaval de uma civilização nova que atinge a forma de pensar: a civilização digital, a era dos computadores, já no desenvolvimento da inteligência artificial, que não sabemos aonde vai chegar, com a ameaça de revoltar-se contra seus criadores, como na ficção científica, em que os algoritmos podem fazer e inventar qualquer coisa. Na guerra entre o livro digital e o livro em papel, já constatamos a morte das enciclopédias, pois nenhuma delas resistiu à realidade da Wikipédia. No campo da abstração, não sabemos mais onde existe a verdade e a mentira, o certo e o errado, a privacidade e os direitos de liberdade, as narrativas que destroem a verdade verdadeira. E tudo está sob ameaça, e todos agem com o espírito de contestação, e daí é um pequeno passo para o desamor e o ódio. 

O Brasil está no rabo desse foguete. Eu, favorecido pela bondade de Deus com vida longa, presenciei esse processo. Na minha experiência pessoal, a política era um terreno de cavalheiros em que havia adversários, mas poucos se consideravam inimigos. 

A raiva e o ódio não faziam parte da política e do relacionamento político. As ideologias de esquerda organizada abandonaram quase todas as práticas radicais, deixando-as com os terroristas, niilistas e anarquistas, e hoje os extremistas são políticos de extrema-direita, no Brasil e no mundo, que, não mais como adversários, mas como inimigos, seguem a teoria leninista-stalinista de que a política deve seguir as leis da guerra, e todos que os contestam devem ser liquidados politicamente ou fisicamente, como fizeram os Estados concentracionários do século 20 ao eliminar seus opositores quando ocuparam o poder na Rússia, na Alemanha, na Itália.  

A Justiça organizada começou a ser estruturada na Antiguidade, continuou no século 13, época do Rei João Sem-Terra, até que, muito depois, na Revolução Gloriosa, do fim do século 18, chegou-se à constatação de que a democracia não podia funcionar sem uma Justiça organizada. Deviam caminhar juntas.

Infelizmente a Justiça é constituída por homens, e estes são vulneráveis às circunstâncias. Houve um processo no Brasil muito danoso, definido pelo ministro Jobim como judicialização da política e politização da Justiça. Não é este o caso dos processos dos acusados de atentar contra a democracia, que correm dentro da estrita forma legal, garantindo o pleno direito de defesa.

É grave o ato do presidente dos Estados Unidos ao aplicar a nosso país sanções econômicas grandes, as maiores do mundo ocidental, e sobretudo ao tentar interferir na Justiça brasileira, sem olhar para a tradição de solidariedade que marcou nossas relações com seu país. Basta lembrar que, nas duas guerras mundiais, lutamos ao seu lado, deixando marca no sangue dos brasileiros que hoje repousam no Campo de Pistóia, na Itália.

 O Brasil sempre resolveu seus conflitos pela diplomacia, nunca foi atacado dessa maneira. Nosso país deve reagir com altivez e equilíbrio, necessários à defesa de nossa soberania e do nosso povo, o maior prejudicado numa guerra econômica, e do bem-estar da nossa nação, evitando a crise e o prejuízo ao aprofundamento da democracia. 

É urgente acabar com a mentalidade da confrontação. É preciso que toda a política, qualquer que seja a sua orientação, esquerda ou direita, seja feita dentro das regras democráticas, do diálogo, do parlamento. É preciso que o sentimento do Brasil, que nunca foi esse, volte a ser o do entendimento e da concórdia.

Quando aparecerem radicais doidos em nossa frente, vamos seguir o conselho do meu avô, que dizia: "Nunca corra atrás de um doido, porque você não sabe para onde ele vai".

Invoquemos os princípios cristãos, aquilo que Cristo dizia no Pentecostes, quando se juntava aos apóstolos:

"— A paz esteja contigo!".

E eu acrescento: a paz esteja com o Brasil.

 

Por Opinião
postado em 01/08/2025 06:00 / atualizado em 01/08/2025 11:24
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