
"Vocês, que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem/que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não (...). Pensem que isso aconteceu: eu lhes mando essas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar, repitam-nas a seus filhos."
Cada vez que vejo as imagens desesperadoras de Gaza, me lembro desse poema.
O menino de 6 anos — idade do meu sobrinho — "vestido" com um saco de lixo, olha para o alto, e nele se vê uma desesperança impossível na infância. O irmão, de 4, no colo da mãe, como um bebê. Contam-se todas as vértebras; a cabeça pende, sem força. É isto uma criança?
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Dezenas de corpos magros, sujos, empilhados. Lutavam por um pedaço de pão, um punhado de batatas, um presunto enlatado. Morreram de barriga vazia, abatidos pelas balas do Exército israelense. Um deles leva na mão uma vasilha oca. É isto um homem?
Uma menina imunda pisa com a sandália cor de rosa sobre ruínas — pedaços de casas, hospitais, escolas, que geraram ao menos 39 toneladas de entulhos entre outubro de 2023 e dezembro de 2024. É isto uma cidade?
Parece um trapo, mas é uma pessoa sentada no chão de um hospital bombardeado. O rosto coberto de poeira, ela ampara duas crianças, que sangram. É isto uma mulher?
Um homem robusto, vestido impecavelmente de terno e gravata, cabelo penteado para o lado. Sentado, em segurança, na cadeira de primeiro-ministro. "Não há política de fome em Gaza, e não há fome em Gaza", ele diz. É isto um ser humano?
É isto um homem? é um poema escrito pelo químico italiano Primo Levi, publicado no livro homônimo de 1947. Judeu, testemunhou o horror do campo de concentração de Auschwitz e se dedicou a denunciar ao mundo o genocídio de seu povo.
Primo Levi morreu em 1987, ao cair do terceiro andar do prédio onde morava. Tinha 67 anos. Embora a circunstância da morte jamais tenha sido esclarecida, muitos acreditam em suicídio. Sobreviveu ao extermínio, mas não à memória do genocídio.
Enquanto esteve vivo, contou, recontou e pediu que narrássemos aos nossos filhos, e estes, aos filhos deles, a desumanização imposta a um povo.
Tinha a esperança de que algo tão medonho jamais se repetisse.