Visão do Corrreio

Morte de menina indígena não pode ser apagada

A morte da menina indígena, vítima de complicações de uma gravidez associada a estupro, precisa ser encarada como grave falência do Estado brasileiro em proteger quem mais necessita

Estupro Opiniao site -  (crédito: Caio Gomez)
Estupro Opiniao site - (crédito: Caio Gomez)

A cada tragédia que assola o mundo, muito se fala sobre a apatia da nossa sociedade, praticamente anestesiada em meio a tantas notícias que embrulham o estômago. Essa indiferença, no entanto, parece ter escalas a depender da vítima de cada ocorrência. Crimes contra crianças, por exemplo, tendem a tocar o coração de cada um de uma maneira diferente, justamente pela jovialidade e pela fragilidade da pessoa envolvida. Quem não se lembra da repercussão dos assassinatos de Henry Borel, Isabella Nardoni e Bernardo Boldrini, só para citar três casos de grande repercussão nacional? 

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Reação semelhante deve causar a morte de Dorca Mata Rattia, menina indígena da etnia Warao, de apenas 12 anos, que perdeu a vida, neste mês, em Betim, Região Metropolitana de Belo Horizonte, em decorrência de complicações de uma gestação ocasionada por estupro, segundo a polícia. Não se trata de comparação sobre o peso de cada vida ou sobre quem é mais ou menos importante, mas de lançar luz sobre uma morte que reflete a sobreposição de desamparos sofridos por brasileiros que estão no topo das vulnerabilidades.

Dorca é vitima de uma série de problemas estruturais do país: o abandono da população indígena, o machismo e a violência sexual contra crianças e adolescentes. O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que ao menos 61% dos estupros contabilizados no país, no ano passado, foram cometidos contra menores de 14 anos. 

Além de ocorrerem em contexto de estupro de vulnerável, segundo o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, essas gestações implicam riscos à vida das meninas e dos fetos — a garota indígena, por exemplo, morreu após sofrer uma série de convulsões ligadas a uma pré-eclâmpsia, condição grave de hipertensão na gravidez e que precisa ser acompanhada. 

A morte da menina de 12 anos durante o parto também simboliza o total desamparo da população indígena no país. E, diante desse quadro, à exceção de casos de profunda vulnerabilidade, como aconteceu com a Terra Indígena Yanomami em 2023, dificilmente há grande repercussão na sociedade em relação a questões do tipo. Basta lembrar outro caso recente de abuso sexual cometido no Amazonas. Uma indígena de 29 anos foi violentada, de novembro de 2022 a agosto de 2023, em uma cadeia em Santo Antônio do Içá.  Só agora, depois que o caso chegou à imprensa, os policiais suspeitos pelo crime foram indiciados.

No caso dos Warao, como noticiado em reportagem da Agência Pública no ano passado, há um aspecto importante: a etnia, conhecida como o povo da canoa, sofre um novo processo de violência no Brasil, após recorrer a uma imigração forçada para deixar a Venezuela, diante do grave quadro de violação dos direitos humanos no país vizinho.

Se cabe à imprensa noticiar os crimes como eles realmente ocorreram, evidentemente com respeito aos preceitos jornalísticos pautados pela ética, é obrigação do poder público dar explicações e promover políticas para evitá-los, assim como é responsabilidade da população se manter vigilante para cobrar respostas das autoridades. 

Casos como o de Dorca Mata Rattia não podem apenas entrar para balanços estatísticos. A morte da menina indígena de origem venezuelana precisa ser encarada como uma grave falência do Estado brasileiro em proteger quem mais necessita. E, nesse aspecto, indígenas, imigrantes e crianças deveriam figurar na mais alta prioridade.

 

 

Por Opinião
postado em 30/07/2025 06:05
x