
A morte de Preta Gil (1974-2025) não é apenas o fim de uma trajetória pública marcada pela música, pela força de uma voz que falava, com desassombro, de amor, liberdade e corpo. É também o ponto em que nos vemos diante de uma das contradições mais dolorosas de qualquer afeto verdadeiro: a luta para reter alguém ao nosso lado enquanto a vida — ou a morte — sussurra que é hora de soltar as mãos.
Preta enfrentou a mais terrível das doenças, como viveu os seus intensos 50 anos — com fé, com alegria, com o peito aberto para o amor. A coragem tão explícita nos palcos e nas entrevistas transbordou também nos corredores de hospitais, nos silêncios de exames, na esperança que não se rende mesmo quando o corpo se fragiliza. Deixa a lição do que é segurar uma pessoa pela mão com toda a força que o coração tem — e, ao mesmo tempo, aprender que amar, às vezes, é respirar fundo e abrir os dedos devagar.
É instintivo que insistamos na presença física de quem amamos. Mas a vida não se curva ao desejo de quem fica. Desprender-se é um ato tão duro quanto essencial. É, muitas vezes, um último presente. Ao libertar quem sofre do peso da nossa necessidade, aceitamos que o corpo não é o único modo de um afeto existir. Na ausência, a presença se espalha na memória e na força que aprendemos com quem partiu.
Há grandeza, também, em dizer: "Vai em paz" — ainda que o peito doa. Assim, cada partida nos obriga a revisitar o amor: não mais posse, mas gratidão; não mais controle, mas rendição; não mais urgência, mas permanência silenciosa. Em tempos em que se cobra presença a qualquer custo — física, on-line, constante —, talvez a partida de Preta Gil nos lembre que o que nos sustenta não é o corpo que se toca, mas o laço que se constrói. E esse laço, mesmo a morte não desfaz.
E há o legado. O que Preta Gil nos deixa vai muito além dos holofotes. Sua voz foi também uma bandeira erguida contra preconceitos, uma celebração do corpo livre, da sexualidade vivida sem vergonha, do direito de ser quem se é. A figura preta, gorda, bissexual e livre foi farol: mostrou que a alegria também é política, que o riso também desafia normas, que a vulnerabilidade não é fraqueza, mas força exposta sem medo.
Esse legado não cabe em manchetes e artigos nem se limita a baladas LGBTQIAPN+ ou blocos de Carnaval. Mora no estímulo que deu a tantas pessoas para se amarem como são, para ocuparem espaços, para afirmarem seus desejos. E mora, sobretudo, no exemplo final de coragem diante da doença: uma mulher que não se rendeu ao silêncio, mas seguiu celebrando a vida enquanto tinha fôlego. Esse rastro de afeto e alegria não morre. Ele segue, de um jeito ou de outro, em cada pessoa que um dia se sentiu mais viva porque viu Preta Gil — filha, mãe, avó, amiga, ícone pop — cantar, falar ou simplesmente existir.
É hora de deixar Preta Gil ir, e ficar com a sua lição.
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