ARTIGO

É preciso resgatar a política como mediadora de conflitos 

Não se busca a interferência na livre manifestação de opinião, como alardeia a retórica extremista. Há, sim, um vácuo político que facilita a distorção dos fatos e favorece a criminalidade nas redes

"A política, por natureza, é uma arte de mediação, não de confronto" - (crédito: kleber sales)

RAUL JUNGMANN, ex-ministro da Reforma Agrária, da Defesa e da Segurança Pública, ex-presidente do Ibama e atual diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram

Costuma-se afirmar que as crises produzem soluções. Mas, no cenário político contemporâneo — no Brasil e no mundo —, elas têm se mostrado mais geradoras de divisões do que de saídas. Vivemos um momento de inflexão, marcado por uma nova bipolaridade, ideológica e caótica, em que o radicalismo mina pontes e esvazia a política de seu verdadeiro papel: mediar conflitos por meio do diálogo.

Há ecos históricos. A geração que viveu nos anos 1960 lembra a tensão entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética na crise dos mísseis em Cuba. Hoje, décadas depois, observamos novos focos de instabilidade: a guerra entre Rússia e Ucrânia, o conflito devastador em Gaza, o ataque aberto de Israel ao Irã há três dias e o impacto da recente eleição norte-americana indicam que os acordos firmados no pós-guerra estão sendo gradualmente desmontados. Nesse novo tabuleiro, o Brasil tenta reposicionar-se.

A aproximação do governo brasileiro com China e Rússia, contrastando com a afinidade entre a extrema-direita local e o trumpismo, é parte dessa dinâmica. No entanto, a motivação real do Brasil, até aqui, é, em boa parte, pragmática: fortalecer parcerias comerciais com a China, por exemplo, tem lógica econômica. Os Estados Unidos (EUA), ao reverem suas políticas migratórias e comerciais, acenam para uma tentativa de retomar sua hegemonia global.

Nesse contexto, surge um novo campo de tensão: o das plataformas digitais. As chamadas big techs — em sua maioria sediada nos EUA — tornaram-se atores centrais nas disputas políticas e ideológicas. 

A resistência dos Estados Unidos à regulamentação das redes, com ameaças de sanções a países que tentam legislar sobre o tema, tem sido explorada por setores extremistas para sustentar uma narrativa conspiratória de "governo contra governo", envolvendo inclusive o Supremo Tribunal Federal.

Mas o que existe, de fato, são decisões judiciais que visam ao enfrentamento legítimo no Brasil de crimes cometidos por meio das redes sociais em seu território. Não se busca a interferência na livre manifestação de opinião, como alardeia a retórica extremista. Há, sim, um vácuo político que facilita a distorção dos fatos e favorece a criminalidade nas redes.

O Congresso Nacional, por omissão, tem permitido que questões de alta relevância — como a regulamentação do ambiente digital — fiquem sob responsabilidade quase exclusiva do Judiciário. Trata-se de um erro grave. É o parlamento que deve exercer esse protagonismo, com base no interesse público e no equilíbrio institucional.

A política, por natureza, é uma arte de mediação, não de confronto. Como na esgrima, exige técnica, escuta, estratégia — não a força bruta da infantaria. Quando substituímos o debate pela polarização e a negociação pelo embate permanente, transformamos a democracia em terreno infértil para soluções coletivas.

A discussão sobre a regulação das redes sociais é complexa, mas o seu fundamento é claro: o que é inaceitável na convivência fora do ambiente digital também deve ser coibido dentro dele. 

No entanto, por conveniência comercial das plataformas, o debate tem girado, exclusivamente, em torno da liberdade de expressão — com foco obsessivo numa suposta ameaça de censura — enquanto se ignoram os crimes concretos que vitimam diariamente milhares de brasileiros.

O repertório de abusos é vasto: crianças e adolescentes manipulados por desafios mortais; jovens envolvidos em atos extremos filmados e transmitidos como entretenimento; golpes financeiros em série; estímulo ao discurso de ódio e à violência, enquanto a liberdade de expressão serve de escudo para a impunidade.

As plataformas digitais tornaram-se campo de batalha simbólico e geopolítico, onde ressurge o debate — em grande parte distorcido — sobre censura. Esse embate é impulsionado pelas redes sociais, cada vez mais divididas em "tribos" que falam apenas aos seus convertidos, confundindo fatos e versões, sem disposição para ouvir.

A omissão diante disso não é neutra — é cúmplice. É preciso resgatar a política como pilar de sustentação da democracia, não como campo de batalhas intermináveis. Ao silenciar diante da responsabilidade de legislar, em ambiente de diálogo, o Congresso enfraquece a si mesmo e entrega à radicalização um espaço que deveria pertencer ao bom senso.

A crise pode, sim, gerar soluções. Mas, para isso, a política precisa deixar de ser espectadora e reassumir o seu papel de protagonista.

postado em 15/06/2025 06:06
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