Opinião

Da crise à autonomia: por que a soberania alimentar é ainda mais urgente agora!

A soberania alimentar urge diante das sucessivas crises sanitárias, climáticas, geopolíticas e econômicas

 O conceito de soberania alimentar ganha força como resposta política, prática e ética como alternativa ao de segurança alimentar -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
O conceito de soberania alimentar ganha força como resposta política, prática e ética como alternativa ao de segurança alimentar - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

José Graziano da Silva, Diretor-geral do Instituto Fome Zero. Julio Berdegué, Ministro da Agricultura do México.


Nas últimas décadas, o mundo assistiu ao esgotamento do modelo global de segurança alimentar. Hoje, esse modelo ruge diante das sucessivas crises sanitárias, climáticas, geopolíticas e econômicas. E mais ainda agora com um aumento de tarifas alfandegárias que enterram a ideologia do livre comércio. O conceito de soberania alimentar ganha força como resposta política, prática e ética como alternativa ao de segurança alimentar. Mais do que uma alternativa, ela se impõe como um imperativo para os países que desejam garantir o direito à alimentação.

A segurança alimentar, formulada após a Segunda Guerra Mundial, visava garantir a disponibilidade de alimentos, priorizando o aumento da produção agrícola e a redução da dependência externa. A Revolução Verde multiplicou a produtividade dos cultivos básicos, como arroz, trigo e milho.

Contudo, a crise de produção dos anos 1970 levou à primeira grande revisão: não basta produzir, é preciso assegurar o acesso equitativo aos alimentos. Foram incorporados a qualidade nutricional, a sustentabilidade ambiental e o respeito às culturas alimentares. Em 1996, na Cúpula Mundial da Alimentação, foi consagrado como um direito o acesso físico e econômico, regular e permanente  a alimentos seguros, nutritivos e culturalmente apropriados.

Mesmo com esse avanço, o modelo dominante seguiu ancorado na premissa de que os mercados globais seriam suficientes para garantir o abastecimento alimentar de todos. Essa suposição está em xeque.

A pandemia de covid-19, as restrições comerciais, a guerra na Ucrânia e a inflação dos preços dos alimentos e insumos entre 2019 e 2023 escancararam as vulnerabilidades. A busca por cadeias de suprimento mais curtas e por maior autonomia alimentar é urgente.

A soberania alimentar se afirma como uma resposta política concreta. Ela reivindica o direito dos povos de definir suas políticas agrícolas e alimentares. Ela propõe fortalecer a produção local e também se opõe à crescente concentração de poder das multinacionais. É um chamado ao interesse coletivo.

Na América Latina, o debate é crescente. A região é um dos maiores polos de produção e exportação agrícola. Em 2021, registrou um superavit comercial de US$ 138 bilhões em alimentos. O Brasil respondeu sozinho por US$ 76 bilhões. Essa inserção global veio acompanhada de uma crescente dependência de importações para o consumo interno, além da marginalização de milhões de pequenos produtores e do aumento da insegurança alimentar dos segmentos mais pobres.

Hoje, a abundância exportadora convive com a fome e a exclusão. A segurança alimentar precisa dialogar com essa realidade. Não se trata de rejeitar o comércio internacional, mas de garantir que a prioridade das políticas públicas seja a de abastecer adequadamente as populações nacionais.

Soberania alimentar significa dotar os países das capacidades necessárias para garantir o direito à alimentação em qualquer circunstância, produzindo alimentos nutritivos com sistemas resilientes ao clima, promover o conhecimento tradicional e o científico, assegurar infraestrutura de transporte, armazenagem e distribuição, criar marcos legais de políticas públicas universais com orçamentos consistentes, proteger a biodiversidade e os ecossistemas, valorizar os trabalhadores rurais. Significa que nossos países assumam com responsabilidade o dever de alimentar com qualidade, respeito e dignidade.

Em países como Brasil, políticas intersetoriais promovem a soberania alimentar. No México, desde 2018, os governos da Quarta Transformação redirecionaram o orçamento agrícola para beneficiar os pequenos produtores, os povos indígenas e os agricultores familiares. A presidente Claudia Sheinbaum lançou o Cosechando Soberanía, que articula crédito, assistência técnica e apoio à comercialização com enfoque agroecológico.

No Brasil, o Programa Fome Zero demonstrou que é possível aliar políticas de acesso à alimentação com o estímulo à produção local. Saímos do Mapa da Fome da FAO em 2014. No entanto, os retrocessos dos governos anteriores a 2023 desmontaram políticas, agravando a fome. A reconstrução dessas políticas sob o governo de Lula representa uma reafirmação do papel do Estado na garantia do direito à alimentação.

Frente ao colapso do modelo neoliberal globalizado, os países que não se prepararem para garantir sua soberania alimentar estarão condenados à submissão. Não começamos do zero. A América Latina tem história e potencial para liderar essa transição. Fortalecer a soberania alimentar é uma necessidade urgente e uma escolha política inadiável.

Por Opinião
postado em 27/04/2025 06:00
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