
EMÍLIO CHAGAS, editor da revista Tição
Quando criamos a Tição, em 1978, tínhamos alguns eixos centrais que nos motivaram e nortearam os rumos da revista: o movimento Black Power, dos EUA, no fim dos anos 60; as revoluções emancipatórias dos países-colônias da África, Angola, Guiné e Moçambique, em especial; o apartheid; o pensamento "uspiano", da Universidade de São Paulo (USP), notadamente o trabalho de abordagens sociológicas do negro pelo professor Florestan Fernandes; a chamada "imprensa nanica" ou alternativa, com suas dezenas de publicações voltadas para os mais diversos públicos, todas de combate à ditadura militar; e, por fim, a situação do negro brasileiro naqueles anos. Enfrentávamos sistemática perseguição policial, discriminação generalizada, barreiras no mercado de trabalho e no acesso ao ensino superior, principalmente, e ausência quase que maciça de autoestima do povo negro. Ou seja, letramento racial nenhum.
Eram tempos em que o negro "conhecia o seu lugar", com papéis limitados ao carnaval, ao samba, ao futebol e atuações secundárias em novelas, estigmatizado em versões serviçais, marginais ou, no mínimo, suspeitas. Sim, havia exceções, com alguns destaques em algumas áreas — artes plásticas, cinema, teatro, por exemplo. Havia, aliás, uma espécie de conformismo ou até mesmo falta de visão crítica e de posicionamento político-racial nessa área. Grande parcela da população negra estava apática, apostava no branqueamento e até mesmo negava a existência do racismo.
Trazíamos tais questões, e muitas outras, em nossa primeira edição — já que havia um grande acúmulo de temas a serem tratados. O grupo idealizador, formado por mim, Emílio Chagas, Jorge Freitas, Jeanice Dias Ramos e Vera Daisy Barcellos, jornalistas na maioria, contou também com ativistas e militantes que não eram da imprensa. Foram os casos do poeta e pesquisador Oliveira Silveira, do estudante de sociologia Edílson Nabarro e do militante Valter Carneiro, que trouxeram outras visões para o grupo. Era, na verdade, o embrião de um incipiente movimento negro. Para além da denúncia, a revista também incorporou a reflexão, a análise, o resgate histórico e o protagonismo do negro. E é nesse contexto que afloram as questões do 20 de Novembro, o apagamento do negro na história gaúcha, o racismo no sistema educacional, a abordagem praticamente pioneira das religiões de matriz africana e da política internacional (África), entre muitas outras que extrapolavam o mero jornalismo.
Toda essa movimentação discursiva transformou as reuniões de pautas em verdadeiros debates, muitas vezes tensos e acalorados — e um aumento significativo de participantes que se somavam à equipe. Ou seja, as reuniões de pauta se tornaram espaço de discussão de visões políticas e posições específicas sobre a realidade do negro. Reuniões estas que se prolongavam horas a fio. Isso mostrava que havia muito espaço e uma grande demanda reprimida de discussão racial. É preciso lembrar que vivíamos sob ditadura militar e as disputas de versões políticas eram intensas e multifacetadas. O fato era que existia um alinhamento político (como toda a imprensa alternativa) contra o regime, mas internamente muitas vezes os posicionamentos não confluíam na mesma direção. É bom lembrar que a ideia da revista surgira em 1976/77, levando praticamente quase dois anos para sua concretização (março de 1978), e muito da demora deveu-se à dinâmica exaustiva desse processo.
Eram basicamente duas linhas: uma que via a questão negra dentro de um viés político e outra que defendia a visão racializadora, restrita às questões da especificidade negra, à qual se alinhava, por exemplo, Oliveira Silveira. Ambas, porém, de enfrentamento ao racismo e suas decorrências. Quase 50 anos depois, constatamos que os avanços foram muito poucos. Vemos claramente um avanço na questão do letramento, inexistente na época, do acesso ao ensino com a Lei de Cotas, (fruto da pressão e da luta negra, certamente), da visibilidade e da autoestima. Mas, os principais vetores fundadores da Tição permanecem. A saber: racismo, exclusão e violência policial.
Constatamos, em síntese, que o racismo ainda está aqui. Mais do que reeditar a Tição, marco histórico na imprensa negra brasileira, num viés comemorativo, notamos que é preciso prosseguir a luta aberta em 1978 porque estruturalmente nada mudou ou se transformou substancialmente. Aqui, na África, nos EUA — avanços e retrocessos, obviamente, em suas especificidades. Resgatar a Tição é só mais um passo para o prosseguimento e contribuição com a luta antirracista.