
José Horta Manzano — empresário
O tabuleiro geopolítico mundial assemelha-se, cada vez mais, a um palco em que os atores, antes bem definidos em seus papéis, ensaiam movimentos fora do roteiro, sob o olhar perplexo de uma plateia incrédula. O brilho da outrora incontestável hegemonia americana, farol seguro e firme, vai se atenuando de modo lento mas inexorável. Não se trata de apagão súbito, é crepúsculo gradual decorrente de medidas tomadas por Donald Trump. Elas corroem o poderio do próprio país que ele tencionava proteger. O remédio que ele receita revela-se demasiado tosco para fazer bem ao país debilitado. Por tabela, sacode as relações político-comerciais entre as nações.
Esse cenário de relativo declínio americano abre uma fresta de oportunidade para que outras potências reconfigurem a balança de poder, mexendo na dinâmica das relações internacionais por caminhos que ainda não compreendemos, mas que já se deixam adivinhar.
Nesse intricado xadrez global, a China emerge com desenvoltura de mestre estratégico. O dragão asiático, impulsionado por décadas de crescimento econômico, consolida a rede de influência que vem tecendo com seus parceiros em nível intercontinental. A ordem tradicional vê-se desafiada. As ambiciosas novas Rotas da Seda, com seus tentáculos de infraestrutura e investimento, redefinem laços comerciais e econômicos, enquanto a ascensão de empresas tecnológicas chinesas alarga as fronteiras da inovação.
Paralelamente, com a modernização constante de suas forças armadas, Pequim projeta uma sombra de poderio militar que açambarca águas e ilhas ao largo de seus mares meridionais. O país não apenas aproveita o vácuo deixado por um possível recuo americano, mas também molda ativamente um novo cenário global, onde sua voz e seus interesses ocupam lugar central. A questão atual não é se a China ascenderá, mas como essa ascensão se dará e qual será seu impacto na arquitetura mundial.
Enquanto o eixo de poder parece deslocar-se para Oriente, a Europa, até outro dia coadjuvante nos dramas globais, prepara-se para um despertar estratégico. Uma ameaça existencial se agita em suas fronteiras orientais, com o conflito latente e as tensões persistentes a lembrarem a fragilidade da paz no continente. Essa percepção, somada a uma crescente dúvida sobre a efetividade do apoio americano, impulsiona um robusto movimento de rearmamento em diversas capitais europeias.
O debate sobre a autonomia estratégica ganha força, impulsionando investimentos em defesa e a busca por maior coesão militar no âmbito da União Europeia. A Europa, consciente de seu peso econômico e de sua herança cultural, está determinada a não ser apenas um espectador passivo na redefinição da ordem global, buscando forjar uma voz unificada e um papel proativo na cena internacional. Contudo, a coordenação entre os diversos interesses nacionais e a superação de antigas rivalidades representam desafios consideráveis nessa jornada rumo a uma autonomia mais ampla.
No extremo oposto dessa dinâmica de ascensão e reafirmação, a Rússia encontra-se imersa num atoleiro que expôs as fissuras de seu projeto de restauração de influência. A aventura militar, concebida para reafirmar sua esfera de poder e desafiar a expansão da Otan, virou um sorvedouro de perdas humanas e materiais, com consequências econômicas devastadoras e um isolamento internacional danoso. A antiga imagem de um poderio militar incontestável ruiu sob o peso da realidade do conflito prolongado, lançando dúvidas sobre suas ambições geopolíticas. O sonho de reviver a velha glória imperial esbarra na dura contingência de um conflito que consome recursos e erode sua posição no cenário global. A saída desse lamaçal e a redefinição de seu papel no mundo pós-conflito representam um formidável desafio para Moscou.
Diante desse panorama complexo, o planeta observa surpreso a cada episódio. As certezas do século 20, moldadas pelo fim da Guerra Fria e pela unipolaridade americana, se esvaem e cedem lugar a um futuro incerto e marcado por incipiente multipolaridade. A ordem liberal internacional, com suas instituições e seus valores, enfrenta o desafio da ascensão de novas potências com visões de mundo distintas e de rivalidades que ressurgem.
A globalização, outrora vista como força inexorável de convergência, revela suas arestas, suas contradições e seus limites, com o protecionismo e o nacionalismo ganhando terreno. A busca por novo equilíbrio global — capaz de garantir paz e prosperidade num mundo ora interconectado e, paradoxalmente, mais fragmentado — emerge como a grande questão para o século 21. As respostas, por ora, permanecem nebulosas, enquanto a dança instável do poder global continua a surpreender com movimentos imprevisíveis.
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