
Chantagem. Essa foi a palavra escolhida pelo vencedor do prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, para classificar a decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e as sanções impostas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
"Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem", diz Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, à BBC News Brasil em entrevista.
O economista tem acompanhado com atenção o aumento das tensões entre o Brasil e os Estados Unidos desde que Trump anunciou, no dia 9 de julho, que adotaria a tarifa adicional para a importação de produtos brasileiros.
Na ocasião, o presidente norte-americano vinculou as tarifas ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no STF por seu suposto envolvimento em uma trama golpista e à atuação do Judiciário brasileiro em relação a empresas americanas de redes sociais, as chamadas "big techs".
Trump também chamou o julgamento de Bolsonaro de "caça às bruxas". O ex-presidente alega ser inocente no processo.
Desde então, o governo brasileiro respondeu às acusações norte-americanas, disse que o país estaria aberto a negociar, mas que não aceitaria interferência estrangeira em questões domésticas.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu declarações afirmando que Trump não teria sido eleito para "imperador do mundo". Suas declarações, no entanto, foram criticadas por membros da oposição que alegaram que o presidente estaria provocando o líder norte-americano.
No início da semana, porém, Stiglitz divulgou uma carta elogiando a postura de Lula diante de Trump.
"Espera-se que outros líderes políticos demonstrem coragem semelhante diante do bullying do país mais poderoso do mundo", disse Stiglitz.
Ainda nesta semana, o governo norte-americano divulgou a ordem executiva que implementa o tarifaço sobre o Brasil a partir do dia 6 de agosto. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos divulgaram uma lista com quase 700 produtos que estariam isentos da tarifa, o que foi visto por alguns analistas como um recuo de Trump.
No mesmo dia, o governo dos Estados Unidos anunciaram sanções financeiras a Alexandre de Moraes, relator do caso de Bolsonaro no STF.
À BBC News Brasil, o economista voltou a elogiar o comportamento de Lula e disse que outros líderes não adotaram uma postura semelhante por conveniência política.
"O que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar."
Segundo ele, a decisão de não capitular diante da pressão norte-americana, faz sentido estrategicamente porque, para o economista, Trump não respeita acordos.
"Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo vale o papel no qual está escrito".
Stiglitz diz que não é possível falar que Trump cedeu ao abrir exceções ao tarifaço brasileiro. Segundo ele, seria preciso entender os mecanismos internos e externos que levaram à sua decisão.
Para o economista, os acordos anunciados por países e blocos, como a União Europeia, com os Estados Unidos dificilmente serão implementados e só foram assinados para que os líderes dos países ameaçados com tarifas pudessem obter uma espécie de "cessar-fogo".
Stiglitz disse ainda que a situação entre Brasil e os Estados Unidos é imprevisível porque, segundo ele, "Trump não conhece limites".
Ainda segundo ele, o presidente norte-americano se empenha tanto na defesa de Bolsonaro por motivos particulares. "O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei".
O economista diz ainda que os supostos ataques dos Estados Unidos ao Brasil deverão empurrar o país cada vez mais para próximo da esfera de influência chinesa.
"Os Estados Unidos fazem de tudo para perder essa nova guerra fria com a China."
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Nos últimos dias, o governo Trump anunciou tarifas sobre produtos brasileiros e sanções contra um ministro do STF, vinculando tudo isso ao processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. O governo brasileiro classificou essas medidas como chantagem. Como o senhor descreveria tudo isso?
Joseph Stiglitz - Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem. Eu não acredito que o presidente Trump tenha a autoridade legal para fazer o que está fazendo.
Muitos comentaristas jurídicos dizem que ele teria uma duvidosa autoridade legal para impor tarifas quando há disputas econômicas. Mas o argumento que ele está usando para impor tarifas contra o Brasil não é econômico. Vocês têm superávit com os Estados Unidos. É justamente o contrário.
Na lógica dele, vocês é que deveriam impor tarifas contra os Estados Unidos. É uma questão política. E o mais surpreendente é que ele está violando o Estado de Direito, como tem feito repetidamente, ao insistir que o Brasil viole o seu Estado de Direito.
O ministro do Supremo [Alexandre de Moraes], pelo que vejo à distância, está agindo totalmente dentro da lei. Sobre o uso da Lei Magnitsky, estudiosos do direito dizem que isso é muito duvidoso. Ninguém jamais teve a intenção de que essa lei fosse usada da forma como está sendo usada.
É um precedente extremamente perigoso quando um líder autoritário nos Estados Unidos diz que vai usar seu poder para interferir no Estado de Direito em outros países.
BBC News Brasil - Ao que tudo indica, Lula parece não ter cedido à pressão dos Estados Unidos, ao menos para interromper o julgamento de Bolsonaro. Nesta semana, o governo americano divulgou uma lista de exceções que exclui 42% das exportações brasileiras dessas novas tarifas. Quem o senhor acha que venceu esse primeiro round desse confronto entre Lula e Trump?
Stiglitz - É preciso dizer que as tarifas prejudicam mais o povo americano do que qualquer outro país. Nós é que pagamos os custos. Trump está prejudicando a economia americana nos fazendo pagar preços mais altos pelo que compramos.
O que eu gostaria de enfatizar é que os Estados Unidos perderam. Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos.
Acho que é realmente muito bom que Lula esteja se posicionando assim como a China se posicionou ante este líder autoritário que está tentando destruir o Estado de direito internacional o qual, ironicamente, os Estados Unidos se esforçaram tanto para construir ao longo dos últimos 80 anos.

BBC News Brasil - O que motiva Trump a defender com tanta veemência Jair Bolsonaro?
Stiglitz – O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei. Trump violou a lei na sua insurreição de 6 de janeiro. E foi uma violação terrível da lei em uma das partes mais importantes da democracia que é a transição pacífica de poder.
É por isso que continuo chamando-o de líder autoritário. Ele tentou impedir essa transição pacífica de poder mesmo com o presidente (Joe) Biden tendo recebido 7 milhões de votos a mais. Nem sequer foi uma disputa apertada. Ele não tinha absolutamente nenhuma justificativa.
E então, claro, essa pessoa fora da lei, autoritária e fora da lei, apoia outras pessoas do mesmo tipo. Bolsonaro imitou o 6 de janeiro. Vocês tiveram o 8 de janeiro. Bolsonaro foi ainda mais imprudente, houve uma insurreição ainda pior.
Felizmente, o Brasil está fazendo a coisa certa, e eu parabenizo os tribunais brasileiros por manterem o Estado de Direito. Isso não é uma caça às bruxas.
BBC News Brasil – O senhor elogiou a postura do presidente Lula desde o início desta crise e também escreveu que líderes mundiais deveriam seguir o exemplo dele. Por que eles não o fizeram?
Stiglitz – Alguns o fizeram. O presidente Xi Jinping se posicionou. Mas acho que a maioria deles sucumbiu à abordagem de Trump. A esperança deles era que uma tarifa de 10% não era tão ruim. Eles achavam que isso simplesmente desapareceria.
Acho que eles estavam esperando que o problema passasse. Foi uma atitude politicamente mais fácil. Eles calculam que ceder é mais fácil que lutar, especialmente considerando todos os instrumentos que Trump tem à sua disposição e que ele está usando.
Trump pode fazer qualquer coisa, porque ele é fora da lei. É por isso que eu acho que eles não se posicionaram. E acho que isso é um grande erro.
BBC News Brasil - No Brasil alguns setores argumentam que o comportamento de Lula foi excessivamente combativo e que ele acabou, em vez de ajudar, prejudicando o país. Como o senhor responde a essa crítica?
Stiglitz – Eles estão equivocados. Lula foi muito claro ao dizer que está disposto a negociar. Mas ele disse que não está disposto a negociar a soberania nacional do seu país. Ele não vai comprometer o Estado de Direito do país. E eu o apoio totalmente nisso. Há coisas que você pode negociar, e há outras que são inegociáveis.
Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo com ele vale o papel no qual está escrito. Ele assina um acordo e depois o viola. Você cede, capitula, e então ele exigirá mais. Nunca sabemos quando isso vai acabar.
Quando se está lidando com uma figura autoritária e errática, você não pode prever nada. Mas, com base no passado de Trump, acredito que o que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar.

BBC News Brasil – Outros países e até mesmo a União Europeia assinaram acordos com Trump. Na sua opinião, esses acordos foram bons ou ruins?
Stiglitz – Antes de tudo, como já disse, um acordo com Trump não vale o papel em que está escrito. Canadá e México assinaram um acordo com Trump há cinco anos e ele os rasgou assim que voltou ao poder. Um acordo não é um acordo. No fim das contas, se ele sentir que não é favorável a ele, ele vai rompê-lo.
Não se deve tomar nada do que ele diz ao pé da letra. A maioria desses acordos, eu acredito, não será realmente implementada. Os países fizeram promessas, mas não explicaram como irão cumpri-las.
A Europa não é uma economia centralizada. Os líderes europeus podem gostar de ouvir que as pessoas farão investimentos, mas eles não podem controlar isso.
As pessoas na Europa podem pensar: "Os EUA é um país maluco para se investir". Como podemos ter certeza de que os europeus farão os investimentos que prometeram? São acordos muito estranhos que não significam muita coisa.
BBC News Brasil - Mas se eles não significam muita coisa, qual é o sentido de fechar esses acordos?
Stiglitz – Do ponto de vista das pessoas que fecham o acordo, é uma trégua temporária. Eles assinam um acordo e Trump promete que, por um tempo, não vai impor aquelas tarifas absurdas. Eles, por outro lado, dizem que não vão retaliar e temos uma trégua.
Isso dura até que Trump mude de ideia. Eles prometem que farão investimentos, mas como se monitora isso? Tudo isso fica no ar.
Daqui a dois anos, alguém vai olhar os números e dizer: "Vocês não cumpriram o que prometeram". E aí teremos outra rodada de negociações. E eu presumo que, nesse momento, Trump já será história.
BBC News Brasil - O senhor acredita que a situação entre Brasil e Estados Unidos pode piorar?
Stiglitz - Qualquer coisa é possível com Trump. Ele não conhece limites. As coisas são simplesmente imprevisíveis com ele. O resto do mundo precisa se acostumar com o fato de que estamos em um novo mundo, onde a maior economia do planeta está sob o controle de um líder errático e autoritário.
A boa notícia para o Brasil é que vocês estão comercializando com a Europa e com a China. A China é, na verdade, o maior comerciante do mundo. Em termos de quem tem as cartas na mão, quem tem poder econômico como potência comercial, está claro que é a China.
Os Estados Unidos dizem que essa é uma nova guerra fria com a China, mas parece que os próprios Estados Unidos estão fazendo de tudo para perder essa guerra fria.
BBC News Brasil – Na carta que publicou há alguns dias, o senhor escreveu que Lula se posicionou contra os interesses das grandes empresas de tecnologia, que são apoiadas por Trump. Por quanto tempo um país como o Brasil pode se opor não apenas à maior economia do mundo, mas também a algumas das maiores corporações do planeta?
Stiglitz - Eu acho que a realidade é que o Brasil tem poder para enfrentar essas empresas de tecnologia. O Brasil tem o direito de regulamentar empresas de tecnologia que operam no país, assim como a Europa faz, de maneira compatível com a lei.
A Europa aprovou a Lei de Serviços Digitais para regulamentar conteúdo, prevenir danos digitais. Todo país deveria fazer isso. As empresas de tecnologia têm roubado conteúdo de outras empresas sem compensação. O Brasil tem o direito, e eu diria até a obrigação, de agir quando há esses atos de roubo cometidos pelas empresas de tecnologia.
Uma das boas coisas sobre o Brasil é que vocês têm um alto nível de competência tecnológica. No mundo moderno, não é tão difícil criar suas próprias plataformas. E nem mesmo é tão difícil criar suas próprias empresas de inteligência artificial.
Na minha opinião, o Brasil tem o poder intelectual, político, tecnológico e econômico para fazer isso.
BBC News Brasil – Algumas pessoas dizem que isso pode aproximar ainda mais o Brasil da China. O senhor acredita que isso é uma possibilidade?
Stiglitz – Como acabei de dizer, o que os EUA estão fazendo é forçar todos os países a se diversificarem e se afastarem dos Estados Unidos. E basicamente há, podemos dizer, três grupos de países para os quais os outros estão se voltando: Europa, China e o restante dos mercados emergentes e em desenvolvimento.
Acho que esses três serão os caminhos seguidos não apenas pelo Brasil, mas por todos os demais países. Os EUA estão mostrando que não são um parceiro comercial confiável, nem um parceiro econômico confiável. E quando você não tem um parceiro econômico confiável, você se afasta dele. É simples aritmética.
BBC News Brasil – O senhor questionou a legalidade das tarifas, dizendo que apenas o Congresso poderia impô-las. Até agora, há uma impressão de que o Congresso e a Suprema Corte não impõem limites à atuação do presidente. Neste momento, Trump é imparável?
Stiglitz – Em muitas áreas houve decisões judiciais contra Trump. Elas o desaceleraram, embora não resultaram em uma verdadeira reversão de suas ações.
O Congresso se mostrou submisso a ele. Muitas pessoas acham que as eleições de 2026 serão um marco, porque as coisas não estão indo bem, o crescimento desacelerou, a inflação subiu, ele não cumpriu todas as suas promessas, o apoio dos eleitores é muito fraco. Espera-se que ele perca a liderança em pelo menos uma das casas do Congresso, o que pode enfraquecê-lo.
Minha preocupação é que alguém como Trump, que afirma que não perdeu as eleições de 2020, mesmo tendo perdido por 7 milhões de votos, não reconhecerá essa derrota ou tentará interferir nos resultados das eleições legislativas de 2026 de alguma forma.
Ele é imparável? Espero que não, mas neste momento a resposta não é clara e é por isso que é tão importante que democracias como o Brasil defendam o Estado de Direito.
BBC News Brasil - Como é, para o senhor, viver nos Estados Unidos atualmente?
Stiglitz – Estou na Universidade Columbia, que é uma das universidades que têm sido atacadas de uma forma que viola todos os princípios da liberdade acadêmica. Nossa universidade cedeu, e isso é, obviamente, muito desconfortável, porque os princípios da liberdade acadêmica são muito importantes para mim.
Os ataques à ciência, aos valores do Iluminismo, ao humanismo e aos princípios da verdade têm sido feitos de uma forma que ninguém poderia prever. É obviamente muito desconfortável. Pior que isso, eu nem sei qual palavra usar. Aqueles que leem história sentem calafrios na espinha.
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