
O direito à existência de Israel e sua segurança é parte da razão de Estado para a Alemanha, o melhor amigo na Europa de um país cada vez mais criticado pela sua estratégia militar na Faixa de Gaza.
A Alemanha apoia Israel em fóruns internacionais e é seu principal parceiro comercial na região.
O país europeu mantém importantes acordos militares com o Estado judaico e sua narrativa oficial relaciona diretamente a existência de Israel à identidade moral e política de Berlim.
Este alinhamento não atende apenas a interesses estratégicos. Seus antecedentes históricos são únicos. Afinal, diferentemente dos outros países europeus, as relações entre a Alemanha e Israel são marcadas pela trágica memória do Holocausto.
Depois do massacre de milhões de judeus pelo regime nazista, mais de oito décadas atrás, a Alemanha assumiu seu compromisso com a existência e a segurança do Estado de Israel. Mas a guerra e, particularmente, a fome reinante atualmente na Faixa de Gaza estão colocando este compromisso à prova.
Outros governos europeus vêm intensificando suas críticas a Israel, enquanto a Alemanha mantinha postura mais cautelosa, especialmente nos primeiros meses do conflito.
Mas a deterioração da situação humanitária em Gaza, a fome denunciada pelos organismos internacionais e as crescentes acusações de crimes de guerra contra Israel começaram a levantar dúvidas sobre um consenso que parecia inabalável.
"O governo alemão continua sendo pró-Israel, mas estamos presenciando uma mudança", afirmou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o diretor do Centro Educativo Anne Frank em Frankfurt, na Alemanha, Meron Mendel.
Mendel é o autor do livro Über Israel reden: Eine deutsche Debatte ("Falando de Israel: um debate alemão", em tradução livre).
Responsabilidade histórica
As estreitas relações entre a Alemanha e Israel remontam a meados do século 20. As feridas do Holocausto eram recentes e havia chegado o momento de assumir responsabilidades.
Em 1952, sete anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e quatro anos antes da criação do Estado de Israel, os dois países assinaram o Acordo de Luxemburgo. Nele, a então chamada Alemanha Ocidental (1949-1990) se comprometeu a pagar reparações econômicas pelos crimes do regime nazista.

Além de definir as bases para a consolidação do Estado israelense, esta decisão abriu um caminho de cooperação que perdura até hoje. Mas, por décadas, esta política não se traduziu em apoio incondicional.
"Se você observar a cultura da memória na Alemanha, de 1950 até o princípio do século 21, mesmo quando eles olhavam para o passado, não pensavam imediatamente em Israel, nem na política israelense", afirma Mendel.
Ele explica que a percepção geral dos alemães em relação aos judeus e a Israel era mais relacionada a "assumir o passado da geração dos seus pais e relembrar os eventos do Holocausto".
Até que, em 2008, houve uma mudança. A então chanceler alemã Angela Merkel (2005-2021) declarou perante o Parlamento israelense que a segurança de Israel faz parte da Staatsräson — a razão de Estado alemã.

Este conceito estabelece um compromisso incondicional com a existência e a segurança do Estado de Israel. Ele foi adotado como princípio reitor da política externa alemã e referendado pelo sucessor de Merkel, Olaf Scholz (2021-2025), e pelo atual chanceler alemão, Friedrich Merz.
O professor de História Michael Brenner, da Universidade Americana, declarou à BBC News Mundo que "a Alemanha sente uma responsabilidade especial de proteger Israel quando sua segurança é ameaçada". Ele cita como exemplo o massacre de 7 de outubro de 2023, que deu origem à guerra atual na Faixa de Gaza.
Brenner é autor de oito livros sobre a história dos judeus e sua relação com a Alemanha. Ele afirma que este compromisso não nasceu de um sentimento de culpa, mas do princípio de "responsabilidade" histórica, presente no discurso político e acadêmico alemão.
"Após duas ou três gerações, já não é possível falar de culpa. Mas a maior parte da elite política está convencida de que a Alemanha deve se opor ao antissemitismo devido à sua história", destaca o politólogo Matthias Küntzel, pesquisador do Centro Vidal Sassoon de Jerusalém e membro do Conselho de Relações Exteriores da Alemanha. Ele é autor de diversos livros sobre o antissemitismo.
Os especialistas defendem que o apoio a Israel desempenha papel simbólico na identidade política alemã contemporânea, como demonstração de que o país já aprendeu com seu passado.
Para Mendel, esta política "se transformou em uma espécie de consenso, da extrema esquerda à extrema direita, em todo o espectro político alemão".
Aliança econômica, militar e diplomática
A história pode ser o fator determinante, mas as relações entre a Alemanha e Israel possuem uma base estratégica que também engloba a economia, a defesa e a diplomacia.
O Estado alemão, atualmente, é o principal parceiro comercial de Israel na União Europeia. O intercâmbio entre os dois países inclui os setores de tecnologia, inovação, infraestrutura e cooperação científica.
Nos últimos anos, a Alemanha dominou quase 20% do total do comércio de Israel com a União Europeia, ocupando o primeiro lugar do bloco, muito acima dos demais países, como a França e a Itália.
No setor de defesa, os alemães são o segundo maior fornecedor de armamentos para Israel, atrás apenas dos Estados Unidos. As exportações incluem submarinos, sistemas de defesa aérea e tecnologia para tanques.
Desde o ataque do Hamas, em outubro de 2023, Berlim forneceu armamentos ao seu aliado no valor de cerca de US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,8 bilhões), segundo o jornal britânico Financial Times.

Por outro lado, Israel também mantém contratos significativos de venda de armas para a Alemanha, como o sistema antimísseis Arrow 3, adquirido por Berlim ao custo aproximado de US$ 3,5 bilhões (cerca de R$ 19,6 bilhões).
Além do comércio e da defesa, os vínculos também se estendem à inteligência e à diplomacia. Os dois países cooperam em organismos multilaterais, como a ONU e a União Europeia, nos quais a Alemanha costuma se alinhar às posições israelenses ou contrabalançar as críticas internacionais.
Israel e Alemanha também mantêm diversos programas educativos e culturais, como cidades-irmãs e intercâmbios juvenis e acadêmicos.
Para Küntzel, o estreito vínculo bilateral se deve, em parte, ao fato de que Israel é uma democracia plena em uma região muito estável, que é o Oriente Médio. Por isso, a Alemanha acredita que suas relações possuem importância estratégica frente ao Irã e potências como a Rússia e a China.
Brenner argumenta que o fator geoestratégico é importante, mas, "sem o histórico do Holocausto, esta cooperação nunca teria atingido tamanha profundidade".

O que muda com a guerra em Gaza
Se existe algo capaz de pôr à prova a férrea defesa alemã de Israel, é a guerra na Faixa de Gaza.
Cerca de 60 mil palestinos foram mortos no território nos últimos 21 meses, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas. Paralelamente, organizações internacionais alertam sobre a grave fome que atinge a população mais vulnerável.
Números do Ministério da Saúde de Gaza indicam que, desde o início da guerra (após o ataque do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023), 147 pessoas (incluindo 88 crianças) morreram por causas que podem ser atribuídas à desnutrição.
Berlim manteve seu respaldo a Israel nos principais fóruns internacionais, mas, agora, começam a surgir movimentos que indicam uma mudança de postura.
Berlim não aderiu ao comunicado apresentado na semana passada por 28 países, incluindo os principais Estados europeus, exigindo categoricamente que Israel suspenda a guerra na Faixa de Gaza.
Mas mas a Alemanha apresentou, em conjunto com o Reino Unido e a França, um texto conjunto, solicitando ao governo do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que ponha fim à "catástrofe humanitária".
O documento considera que "reter ajuda humanitária essencial, para que ela não chegue à população civil, é inaceitável".
"Solicitamos ao governo israelense que suspenda imediatamente as restrições ao fluxo de ajuda e permita urgentemente que a ONU e as ONGs humanitárias realizem seu trabalho para combater a fome", prossegue o comunicado. "Israel deve cumprir com suas obrigações, em virtude do direito humanitário internacional."
O governo Netanyahu nega estar bloqueando a distribuição de alimentos. Ele também criticou a ONU por não recolher e transportar oportunamente os suprimentos que se encontram no lado de Gaza da fronteira, à espera de serem distribuídos.
A ONU rejeita as observações e destaca que o fluxo de ajuda depende de Israel, que mantém o controle do território.
Na Alemanha, as críticas a Israel surgiram recentemente dentro da coalizão a que pertence o governo do conservador Friedrich Mertz. Alguns membros da coalizão chegaram a falar em "crimes de guerra".
Michael Brenner destaca que, "enquanto os democratas-cristãos [sócios majoritários do governo e o partido do ex-chanceler Merz] relutam a se associar abertamente a outros países ocidentais que pedem o fim da guerra, os social-democratas [minoritários] são mais críticos sobre a política israelense em Gaza e desejam limitar ou pôr fim à exportação de armas alemãs a Israel".
"Tanto o chanceler quanto a ministra de Relações Exteriores [Annalena Baerbock] são democratas-cristãos, mas acredito que até eles acabarão criticando, em algum momento, a continuidade da guerra israelense em Gaza", prevê ele.
Para Meron Mendel, "o conceito de Staatsräson, a razão de Estado, de solidariedade com Israel, está cambaleando".
Ele destaca que "os cidadãos alemães, como outras populações europeias, não conseguem entender por que Israel age desta forma. Até pessoas que, antes da guerra, estavam mais ou menos do lado de Israel, agora, estão muito perturbadas com a situação".
É possível observar a tensão nas ruas. Na semana passada, uma manifestação pró-Palestina percorreu o centro de Munique, na Alemanha. Centenas de judeus e simpatizantes formaram uma corrente humana para proteger a principal sinagoga da cidade.
Pouco antes, um restaurante israelense em Berlim decidiu não abrir, após intensos protestos de um grupo palestino.

A evolução da guerra na Faixa de Gaza e a situação humanitária dos palestinos pode direcionar a política alemã contra Israel nos próximos meses.
"Não acredito que o princípio da Staatsräson vá desaparecer", indica Mendel.
Mas ele prevê que, "se a guerra não terminar, se a situação humanitária em Gaza continuar como está ou se tornar ainda mais catastrófica, haverá uma mudança nas políticas da Alemanha".
Brenner destaca o "desequilíbrio entre o apoio oferecido pelo governo a Israel e a opinião política na Alemanha, que é muito mais crítica em relação à guerra israelense em Gaza".
"Se isso continuar aumentando, especialmente entre uma geração mais jovem de políticos, poderá surgir uma mudança de rumo", sentencia ele.
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