
AVISO: Esta reportagem contém descrições de mortes de crianças e imagens de ferimentos — alguns fatais — que os leitores podem achar perturbadores.
Uma criança pequena está deitada de bruços imóvel em uma rua na Cidade de Gaza. Suas pernas estão dobradas e sua cabeça está virada de lado, como se estivesse dormindo.
Um homem está deitado ao lado dela. Ele se estende em direção a ela, e sua mão a toca levemente antes de cair no chão, enquanto sua vida se esvai.
Este vídeo foi transmitido pela rede catariana Al Araby TV no fim de dezembro de 2023. O homem e a criança foram baleados por franco-atiradores israelenses, segundo a reportagem.
Eles não deram mais detalhes sobre o que aconteceu ou quem eles eram. Uma investigação do Serviço Mundial da BBC descobriu que se tratava de Mohamed al-Majdalawi e sua filha de dois anos, Layan. Ambos morreram na rua naquele dia.
A BBC reuniu informações sobre Layan e mais de 160 outras crianças que foram baleadas na guerra em Gaza entre o início do conflito, em outubro de 2023, e julho deste ano.

Israel proíbe jornalistas estrangeiros de entrar em Gaza de forma independente, e a destruição e o desalojamento também dificultam a apuração de informações.
No caso de Layan e seu pai, comentários e postagens nas redes sociais permitiram à BBC determinar a localização do vídeo, identificar as vítimas e encontrar suas certidões de óbito.
Durante muitos meses, procuramos parentes sobreviventes, e finalmente entramos em contato com a mãe de Layan, Sorayya, e seus irmãos adolescentes, Aboud e Shahd, durante o cessar-fogo em fevereiro de 2025, quando ficou mais fácil para as pessoas se deslocarem.
Eles nos contaram o que havia acontecido naquele dia.
Em 9 de novembro de 2023, ao meio-dia, a família nos disse que deixou uma escola no acampamento de al-Shati, onde se abrigava dos ataques aéreos, após receber uma ordem de evacuação do Exército israelense.
Eles contaram que caminharam para o sul a partir da escola e viraram a leste na Rua Hamid, onde passaram por um morador local que disse a eles que a rota era segura.
Shahd, que tinha 12 anos na época do ataque, relatou à BBC que não havia combates nas imediações.
"Estávamos caminhando juntos", ela recorda. "Estávamos na frente do nosso pai, ele estava brincando e cantando com a Layan."
Ao passar por uma rua com uma bifurcação à esquerda, Shahd contou que eles viram um tanque e começaram a correr.
Seu pai estava atrás, segundo ela, se movendo mais devagar porque estava carregando Layan.
"Olhamos para trás, e ele estava deitado no chão", diz ela.
Shahd afirmou que ela e o irmão voltaram correndo para ajudá-lo, e perceberam que ele havia sido baleado.
"Tentei alcançar minha irmã para pegá-la, mas levei um tiro no braço", relembra Shahd.
Ela disse que seu pai gritou: "Vão embora e me deixem!"
Shahd fugiu com a mãe e o irmão. Eles nunca mais viram Mohamed ou Layan.
A BBC obteve uma imagem de satélite capturada às 10h30 (horário local), cerca de duas horas antes dos disparos. Não temos permissão para publicar a imagem, então a recriamos.
Ela mostra a presença das Forças de Defesa de Israel (FDI) a 280 metros ao norte da família, e um tanque na mesma rua onde Shahd diz ter visto um.

Stuart Ray, analista militar da McKenzie Intelligence em Londres, analisou a imagem e apontou tanques, veículos blindados, escavadeiras militares e barreiras defensivas de areia.
Ele observou que o local tem os edifícios mais altos das imediações, o que, segundo ele, sugeria que se tratava de uma posição fortificada das FDI e que teria infantaria.
A Al Araby TV transmitiu três vídeos de Mohamed e Layan.
Mostramos esses vídeos a três patologistas forenses com experiência em ferimentos de guerra.
Todos afirmaram que era evidente que Mohamed e Layan foram mortos a tiros.
Derrick Pounder, ex-chefe de patologia da Universidade de Dundee, na Escócia, disse que a posição dos corpos sugeria que Mohamed — que estava carregando Layan — havia desabado repentinamente, em vez de ter sido lançado por uma explosão.
Ele também observou a ausência de ferimentos graves evidentes: "Então, estamos falando de um ferimento que pareceria pequeno por fora, e um tiro é a principal causa possível para isso."
"Os ferimentos a bala de alta velocidade causados por rifles militares deixam um pequeno orifício de entrada e causam lesões internas devastadoras", acrescentou.
Apresentamos essas conclusões às FDI, que afirmaram: "Os soldados das FDI operam contra organizações terroristas em ambientes urbanos complexos, e danos não intencionais ou equivocados podem ocorrer durante o combate".
"Sempre que houver suspeita razoável de que as forças das FDI agiram de forma contrária aos valores e ordens das FDI, o incidente será analisado e tratado com a seriedade necessária", acrescentaram.
Eles afirmaram ainda que os detalhes deste caso "foram registrados e serão analisados pelas autoridades competentes".

Em outro ataque analisado pela BBC, Mira Tanboura, de seis anos, foi atingida na parte de trás do peito, segundo seu pai, Saeed. Ele disse que o incidente ocorreu em 18 de novembro de 2023, perto de um posto de controle das FDI na rodovia Salah al-Din, a sudoeste da Cidade de Gaza.
A rodovia Salah al-Din é a principal via arterial sentido norte-sul de Gaza, e foi designada pelo Exército israelense como rota de evacuação para civis do norte.
No início daquele dia, Saeed contou que a família havia sido revistada no posto de controle das FDI após fugir do norte de Gaza.
A pouco mais de um quilômetro desse posto, ele disse que estava conversando com um motorista de ônibus, enquanto Mira e outros parentes estavam a poucos metros de distância.
"Eu me virei, e o franco-atirador disparou no coração da minha filha Mira", ele relata. "Tenho certeza de que era um franco-atirador porque foi apenas um tiro que a atingiu no coração."
"Ela sangrou pelo nariz e pela boca."
Saeed contou que levou a filha às pressas para o hospital al-Awda, em Deir al Balah, onde, segundo o diretor da unidade, ela foi declarada morta.
A BBC viu uma fotografia do corpo de Mira envolto em uma mortalha branca, com o rosto exposto e sangue ao redor da região do peito.
Uma imagem de satélite do dia anterior mostra a posição das FDI no posto de controle. Um vídeo postado pelas FDI online alguns dias antes confirma sua presença.

O cinegrafista da BBC News Arabic, Jehad El-Mashhrawi, passou pelo posto de controle com sua família dois dias antes dos Tanboura.
Ao lado, ele disse ter visto "soldados em bancos de areia e dentro de casas destruídas, sentados ou deitados de bruços, com suas armas prontas para atirar".
Ele afirmou ter visto franco-atiradores e outros soldados a um ou dois quilômetros além do posto de controle, no lado leste da rodovia, em prédios destruídos ou atrás de barreiras de areia.
Saeed revisitou o local durante um cessar-fogo para a BBC. Ele disse que, quando Mira foi baleada, viu soldados israelenses a leste da rodovia: "Eles estavam mirando em nós".
Ele apontou na direção de onde acredita que o disparo veio. Uma barreira defensiva de areia pode ser vista nesse local na imagem de satélite.
No momento em que Mira foi baleada, não encontramos relatos de confrontos com o Hamas nas proximidades do posto de controle, o que reduz a probabilidade de ela ter sido pega em meio ao fogo cruzado.
"O Exército [israelense] nos disse que havia estabelecido um corredor seguro, a rodovia Salah al-Din", recorda seu pai. "Depois de nos fazer ir para Salah al-Din, mataram uma criança inocente."
Quando apresentamos as alegações feitas neste caso às FDI, elas afirmaram: "Uma alegação de dano, por si só, não indica necessariamente uma violação da lei."
E, assim como no caso de Layan, acrescentaram que os detalhes deste caso "serão analisados pelas autoridades competentes".
Os médicos têm manifestado preocupação com as crianças baleadas em Gaza desde o início da guerra. Para esta reportagem, a BBC conversou com 30 médicos e enfermeiros e analisou centenas de fotos e vídeos, além de exames, prontuários médicos e registros que eles compartilharam.
"Vimos um número significativo de ataques a tiros, com balas na cabeça ou no peito, inclusive em crianças", disse Nizam Mamode, médico aposentado do NHS, sistema público de saúde britânico, e cirurgião de transplantes baseado no Reino Unido, que esteve em Gaza por um mês em agosto de 2024.
Ele afirmou que a maioria dos ferimentos na cabeça foi tratada por neurocirurgiões, e que os raios-X mostraram "uma bala literalmente alojada no cérebro de uma criança de três anos".
Ele disse que perdeu a conta do número de crianças com ferimentos a bala que viu, mas que provavelmente eram mais de 20.

Também reunimos relatos de testemunhas oculares e familiares sobreviventes — alguns dos quais foram compartilhados por meio de organizações de direitos humanos —, e compilamos e verificamos reportagens publicadas na imprensa.
A partir destas informações, reunimos detalhes de 168 crianças que foram baleadas, incluindo apenas os casos em que foi possível ver a documentação dos ferimentos.
Houve 95 casos em que a criança foi baleada na cabeça ou no peito — e, destes, 67 crianças tinham menos de 12 anos.
Em 59 casos em que a criança foi baleada na cabeça ou no peito, conseguimos obter um relato de testemunhas sobre o que aconteceu — seja diretamente ou por meio de médicos e pesquisadores de direitos humanos.
Em 57 destes casos, alegou-se que as FDI atiraram na criança.
Nos outros dois, as crianças teriam sido baleadas por palestinos — uma por tiros de comemoração, e a outra, em um conflito entre gangues.
Para os 36 casos restantes, não temos relatos do que aconteceu. Sem acesso a Gaza para fazer a apuração, é extremamente difícil obter informações sobre cada criança.
"O mundo simplesmente não pode aceitar esse tipo de guerra, esse tipo de impacto sobre as crianças", diz Matthew Morris, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
"Crianças foram mortas e feridas em suas casas, quer estivessem em tendas ou andando nas ruas."

Embora não tenhamos provas da intenção, os casos de Mira e Layan levantam questões sobre como as FDI operam em Gaza.
Esta semana, o grupo israelense de direitos humanos B'tselem denunciou o que descreveu como a ausência de quaisquer regras de combate para as forças israelenses em Gaza.
Um soldado, a quem vamos chamar de K, era reservista em Gaza no início de 2024.
K citou quatro incidentes separados nos quais disse que sua unidade matou pessoas desarmadas, incluindo dois meninos que ele descreveu como adolescentes.
Ele disse que na rodovia sentido norte-sul, a "regra geral" era "é uma zona segura e não se atira".
"Qualquer pessoa que você vir fora da estrada humanitária, atire, atire para matar."
"Foi isso que nos disseram", ele recorda.
"Nosso comandante ressaltou que, claro, se for mulher ou criança, não atire, tente detê-los. Não seja estúpido."
Mas ele contou que, com o passar do tempo, e a unidade perdendo alguns soldados em tiroteio, as atitudes endureceram: "Era simplesmente... destruir tudo, matar todo mundo que você vir."
Mostramos as evidências que reunimos sobre Layan e Mira, assim como um resumo dos outros casos, a especialistas em combate e leis de guerra.
Eles disseram que isso levanta questões sobre se esses tiros foram resultado de imprudência, negligência ou ataque intencional.
"Sob o direito internacional, soldados profissionais têm a obrigação de verificar, antes de disparar, se o alvo é um combatente inimigo legal, e não um civil", explica Wes Bryant, analista militar que serviu nas operações especiais dos EUA e assessorou o Pentágono na proteção de civis.
"Portanto, quando tantas crianças estão sendo baleadas, especialmente na cabeça, isso nos indica que algo está muito errado."
Janina Dill, professora de direito internacional na Universidade de Oxford, no Reino Unido, disse que, ao analisar as decisões sobre alvos no direito internacional, "muitas vezes é muito difícil chegar a uma conclusão jurídica definitiva, até mesmo preliminar, à distância, onde nunca se tem todas as evidências".
"Neste caso, as evidências disponíveis apontam diretamente para uma violação muito grave da lei, potencialmente até mesmo um crime de guerra. Isso é bastante raro", ela acrescentou.
Ao ser questionada sobre as ações dos soldados, as FDI disseram: "O dano intencional a civis, especialmente a crianças, é estritamente proibido e totalmente contrário ao direito internacional e às ordens vinculativas das FDI".
E afirmaram que o Hamas "explora a população civil — especialmente mulheres e crianças — como escudos humanos".
Também destacaram que os incidentes que levantassem suspeitas de desvio das ordens e valores das FDI seriam, quando apropriado, investigados pela Divisão de Investigação Criminal da Polícia Militar.
Dos 168 casos que analisamos, sabemos que pelo menos 90 crianças morreram. Devido aos danos causados ao sistema de saúde de Gaza, é difícil determinar quantas acabaram sucumbindo aos ferimentos.
De acordo com o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas, pelo menos 50 mil crianças foram mortas ou feridas em Gaza desde o início desta guerra. Israel lançou sua campanha militar em Gaza em resposta ao ataque pela fronteira do Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e outras 251 foram feitas reféns.
As famílias com quem conversamos para esta investigação dizem que não têm esperança de obter justiça para seus filhos. Algumas não foram capazes de enterrar seus corpos.
Os restos mortais de Layan e Mohamed permaneceram na rua Hamid por dias. Duas semanas depois, durante um breve cessar-fogo, seus corpos foram enterrados por vizinhos.
E — até entrarmos em contato com eles mais de um ano depois — a família não fazia ideia de que o vídeo de suas mortes sequer existia.
Reportagem adicional de Shaina Oppenheimer
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