
Buenos Aires — Apesar da cooperação histórica entre Brasil e Argentina, desde que o presidente Javier Milei (La Libertad Avanza) assumiu a Casa Rosada, em dezembro de 2023, os dois chefes de Estado não se encontraram em uma agenda bilateral. Parte disso se deve às posições ideológicas distintas. Porém, o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Julio Glinternick Bitelli, defende que a relação segue um curso de normalidade e que é preciso "desdramatizar" o impacto da divergência entre Milei e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em entrevista ao Correio, o diplomata explicou que, pela relação de interdependência, as equipes das duas nações trabalham para deixar de lado as diferenças e firmar novos acordos que as beneficiem em questões como fornecimento de gás, considerado estratégico pelo Brasil, que pretente comprar o produto vindo da reserva de Vaca Muerta, na Patagônia.
Já faz quase dois anos que Javier Milei assumiu, mas ainda não houve um encontro com Lula. Qual a possibilidade de se reunirem?
Olha, eles já se encontraram três ou quatro vezes. A última delas aqui na Cúpula do Mercosul, quando houve uma transferência da presidência argentina para a brasileira muito correta. Isso está filmado, fotografado e tudo. Um encontro bilateral no sentido mais clássico, com uma conversa entre os dois, ainda não ocorreu. Agora, é preciso desdramatizar essa questão. Ocorrerá se tiver que ocorrer. As relações estão seguindo um curso de muita normalidade. Elas não podem ficar reféns de se os presidentes vão ou não se encontrar. Eu acho que o importante é que haja o respeito mútuo e que haja uma compreensão dos dois lados da importância da relação. E isso é o que a gente tem visto.
O senhor foi orientado por Lula a não deixar que questões ideológicas atrapalhem a relação. Acha que isso tem sido possível?
Sim, tem sido possível. Eu acho que há uma compreensão importante dos dois lados. De que a relação tem um peso específico que justifica passar por cima das diferenças que são circunstanciais. E os interesses comuns são mais importantes do que essas diferenças. Essa é a orientação do presidente e é assim que a gente está trabalhando.
O senhor está aqui desde 2023. Viu diferença na receptividade dos diplomatas argentinos às discussões com o Brasil com a mudança de governo?
Não, o que houve foi uma mudança importante da maneira como esse governo argentino entende o comércio internacional e os investimentos. Houve uma mudança profunda em comparação com o governo anterior. O que o Brasil está procurando fazer, e o setor privado brasileiro, é entender o que essas mudanças na Argentina implicam em termos de oportunidades de negócios. E há muito interesse e há muita atenção posta na Argentina. Isso passa, sobretudo, pelo setor privado. Esse é um governo argentino que deixou claro que entende a participação do Estado nas questões de comércio como algo secundário em relação ao privado, e é preciso que, no Brasil, entenda-se essa nova lógica para que se busquem as oportunidades melhores aqui. É o que está acontecendo.
Quais são as áreas prioritárias da diplomacia brasileira em relação a novos acordos com a Argentina?
A agenda bilateral é muito ampla e abarca inúmeros temas. Em termos das prioridades atuais, obviamente você tem no âmbito do Mercosul que avançar com essas negociações externas. Nós completamos as negociações com a União Europeia, completamos as negociações com o Efta (Associação Europeia de Comércio Livre), estamos avançados na negociação com os Emirados Árabes. Há interesse com conversas iniciais com o Canadá, com o Japão, com a Indonésia, com outros países. Isso é um aspecto que, dentro do Mercosul. abarca naturalmente as relações do Brasil com a Argentina. E isso está avançando de maneira bastante importante. Do ponto de vista estritamente bilateral, um tema central é a questão da integração energética. A conversa em curso é com relação ao suprimento de gás pela Argentina ao Brasil. Isso tem avançado também. É um tema complexo que envolve diferentes atores.
Existem negociações em outras áreas?
Há uma série de outros interesses, quer dizer, turismo, cultura, agricultura, cooperação fronteiriça, combate ao crime transnacional... Estamos trabalhando juntos também para melhorar o funcionamento da Hidrovia Paraguai-Paraná. Há uma série de coisas na agenda que têm o seu curso normal e nas quais a gente está trabalhando.
O senhor mencionou a exportação de gás pela Argentina. Como está a situação de Vaca Muerta?
O Uruguai chegou a se oferecer para hospedar um gasoduto.
No final de 2023 foi assinado um memorando de entendimento entre o Brasil e a Argentina. Constituiu-se um grupo de trabalho para analisar as diferentes opções para que o gás de Vaca Muerta chegue ao Brasil. As primeiras moléculas já chegaram ao Brasil via Bolívia. Houve uma reversão do Gasoduto Norte, que trazia gás boliviano para a Argentina. Esse gás, então, entrou pela Bolívia, se conectou com o Gasbol (Gasoduto Bolívia-Brasil), que leva o gás boliviano ao Brasil, e o gás de Vaca Muerta já chegou ao Brasil, só que ainda em quantidades pequenas. Obviamente, para que isso adquira um caráter mais estruturado, é preciso pensar em outras rotas. E há várias alternativas. Você mencionou o Uruguai, mas o Paraguai também se se ofereceu para ser um país de trânsito do gás argentino para o Brasil. Há um projeto de que o gás chegue diretamente por Uruguaiana e entre já pelo Rio Grande do Sul, partindo dali para Porto Alegre.
É possível dizer qual opção seria mais viável?
Há diferentes alternativas. Um dos objetivos desse grupo de trabalho era justamente analisar as opções e chegar a algum tipo de conclusão sobre quais seriam as mais viáveis. E é importante dizer que as alternativas não são excludentes. É possível fazer um uma mistura de várias para que chegue o gás ao Brasil. Ainda estamos em uma fase de definição. Como eu dizia, há vários atores que têm que participar da discussão. Não só o fornecedor, o produtor e o receptor do gás, mas o transportador e uma série de etapas intermediárias, que correspondem a empresas privadas. E estamos conversando também, trazendo para as discussões essas empresas privadas que têm interesse nesse negócio. É uma questão complexa, mas estamos avançando porque o interesse parece óbvio: a Argentina tem muito gás, nós precisamos de muito gás.
Essas empresas são brasileiras ou argentinas?
Brasileiras, argentinas, internacionais. Nesse negócio do gás e do petróleo, em geral, essas empresas funcionam muito com a composição de consórcios que envolvem tanto empresas nacionais como estrangeiras.
O senhor já esteve na diplomacia brasileira em Washington. Como tem visto a reação dos países sul-americanos à postura do presidente norte-americano Donald Trump, que recentemente sobretaxou produtos brasileiros?
Não há um bloco na América do Sul hoje. Na verdade, em relação a isso, o que nós estamos vendo é muito mais um conjunto de atitudes individuais de cada país. E aí cada país está defendendo os seus interesses. Nesse momento, pelo formato da região, dos governos da região, é muito difícil pensar em uma atuação unificada da América do Sul. Isso hoje não é muito factível. Então, o que está havendo são políticas individuais de cada país, até porque as situações são distintas em cada um deles para fazer frente a essa situação.