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Em entrevista, Michel Alcoforado fala sobre milionários brasileiros

Em estudo etnográfico que durou 15 anos para ficar pronto, o antropólogo Michel Alcoforado analisa a desigualdade no Brasil a partir dos hábitos das elites brasileiras. Autor lança livro nesta quarta (17/9), na Platô

O antropólogo Michel Alcoforado fez um estudo etnográfico da elite econômica brasileira -  (crédito:  Renato Parada/Divulgação)
O antropólogo Michel Alcoforado fez um estudo etnográfico da elite econômica brasileira - (crédito: Renato Parada/Divulgação)

Foi preciso o título acidental de “antropólogo do luxo” para que Michel Alcoforado conseguisse dar fôlego à pesquisa sobre como vive a elite brasileira que rendeu o livro Coisa de rico —  a vida dos endinheirados brasileiros. Publicado pela Todavia, o livro teve os primeiros 5 mil exemplares esgotados e a editora fez uma reimpressão de 21 mil exemplares. O tema fez tanto sucesso que o estudo está entre os quatro livros mais vendidos da Amazon. O texto é fruto do doutorado do antropólogo, uma pesquisa etnográfica iniciada há 15 anos para compreender como vivem as elites brasileiras, qual o impacto na desigualdade do país e quais os hábitos de consumo dessa classe. “A ideia  de estudar os ricos vem muito por conta das minhas experiências com o campo, quando me dou conta de que, na sociedade brasileira, a gente não sabia muito bem o que alguém precisava ter para ser considerado rico. Eu já sabia que dinheiro só, não era suficiente. Mas acho que também me interessava entender esse modelo de sociedade onde as pessoas sonham em ficar ricas”, conta o autor.

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Durante viagens à França e outros países, Alcoforado percebeu que havia uma boa quantidade de livros falando mal dos ricos. “E, no Brasil, não. Havia um fascínio por isso, biografias de ricos, livros sobre como ficar rico. E decidi transformar a pesquisa num livro”, conta. “Eu achava que ia gerar algum barulho, mas não ser o mais vendido. Porque é um livro de antropologia, é uma etnografia.” A tese começa com uma viagem a Miami durante a qual o autor conhece Claudette e Mário Jorge, um casal de novos ricos em missão de compras na cidade americana. Claudette e Mário Jorge se tornam importantes, ao longo do livro, para entender a diferença crucial entre os ricos emergentes e aqueles de berço, duas categorias que desempenham um jogo frenético de atração e repulsa. 

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Os primeiros querem parecer os segundos, enquanto os últimos querem evitar qualquer semelhança. Interessado pelos marcadores de diferença presentes em qualquer sociedade, Alcoforado faz dos códigos que diferenciam as duas categorias um ponto importante que permeia toda a pesquisa. “O livro tem um papel de mostrar como a desigualdade se mantém e é construída, reforçada e legitimada nos encontros cotidianos que vão dar nos estudos estatísticos que economistas e sociólogos já tinham observado. E aí entra a ideia de que a gestão das fronteiras e das distâncias é um lugar importante para olhar para isso. E não se faz isso só com dinheiro, um diploma ou um atributo. Isso é feito, sobretudo, com as coisas. Então o livro oferece esse olhar”,  explica, Alcoforado, que lança o livro em Brasília nesta quarta-feira (17/9), na Livraria Platô

Com muito humor e um texto acessível e cheio de exemplos e histórias de pessoas, o antropólogo leva o leitor para o mundo dos ricos e mergulha, ele mesmo, em uma espiral na qual, para ser aceito entre as elites, precisou atuar como um “de dentro”. Ao aprender e praticar a cartilha certa — o que incluía uma secretária falsa, vestir calça cáqui, blazer azul marinho e mocassim marrom, emagrecer 40 Kg, assinar revistas de comportamento e aprender os sobrenomes quatrocentões —, Alcoforado foi eleito o “antropólogo do luxo” e ganhou passaporte para salas de estar decoradas com sofás específicos para cada ocasião e pinturas milionárias cuja função era apenas avisar ao visitante o peso da conta bancária alheia. 

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O antropólogo ensina então que, no Brasil, diferentemente da França, por exemplo, os endinheirados se destacam pelas coisas que possuem e pela capacidade desses bens serem identificados pelos “de dentro” ou pelos “de fora”. Se o novo rico quer estampar para qualquer um a prosperidade, os herdeiros preferem a discrição e querem ser identificados apenas por seus pares. Nessa corrida, acabam perdendo porque, logo que uma “coisa” começa a ser usada pelos emergentes, ela perde valor. Outro detalhe tipicamente brasileiro é que os ricos nacionais não se identificam como tal. Se dizem todos classe média, o que até ajudou a Alcoforado a não ser repelido após publicação do livro. “Quando me perguntaram se fiquei rico, respondo que, como aprendi com os ricos, tenho uma vida boa com conforto, mas sou de classe média. Tá todo mundo nesse jogo. Quando li o livro da Tati Bernardi (A boba da corte), me perguntei ‘como esse povo sobre o qual ela escreveu vai recebê-la agora?’. Mas ninguém se acha parte desse mundo”, garante o autor, que conversou com o Correio sobre a pesquisa e sobre o sucesso do livro. 



Coisa de rico — a vida dos endinheirados brasileiros

De Michel Alcoforado. Todavia, 238 páginas. R$ 89,90



ENTREVISTA/ALCOFORADO



Por que, na sua opinião, o livro está angariando tanta leitura?

O ponto que gosto muito é que acho que consegui fazer um livro que é lido de diversas formas. Um leitor mais interessado com o que acontece no mundo dos ricos lê e fica interessado nas histórias. Um leitor mais crítico, que eu chamo de leitor Piauí, acha que fiz o White Lotus brasileiro, reconhece uma crítica debochada, e o leitor acadêmico acha que atualizei (Pierre) Bourdieu aos trópicos. Então, acho que consegui fazer um livro polifônico, e isso eu não esperava.

Entender a desigualdade a partir da perspectiva de como vive a elite brasileira era um dos seus objetivos. Pode explicar como percebeu que esse seria um caminho? 

Eu estava muito interessado em estudos de desigualdades no Brasil, que hoje é um debate dominado por sociólogos e economistas que tentam entender por que a sociedade brasileira é tão desigual há tanto tempo. Mas quando algo não funciona, sempre acho que deve ter mais coisa no jogo para além do que a gente está falando. Então quis fazer o entendimento da desigualdade social brasileira, como ela é produzida e se mantém. Como as pessoas operam a desigualdade e a diferença no cotidiano, como as instituições sociais e o lugar onde você nasce determinam como vai ser a sua trajetória no Brasil. E, para isso, tive que entender como se dá a operação das distâncias alinhada às desigualdades brasileiras. E ela também se dá na organização de filas preferenciais, na eleição de quem vai ser normal, vip ou vipão, na quantidade de pulseiras preferenciais, na forma como a gente se veste, fala, olha para a vida. Foi isso que me motivou. 

Coisa de rico é o título do livro, mas também um marcador importante das diferenças. Pode explicar como ele opera na sociedade?

Nós, antropólogos, temos a mania horrorosa de levar a sério o ponto de vista nativo e a principal coisa é que nenhum rico brasileiro se via como rico. E, em vez de achar que essas pessoas estavam mentindo para mim, eu falei ‘deve ter algo que faz eles acharem que não são ricos e que preciso descobrir’. E passei por essa ideia de achar que a tradição católica brasileira gerava desconforto com a riqueza, o que não é verdade, porque é um país onde está todo mundo querendo parecer mais rico do que é. Se houvesse preconceito com isso, não estaríamos nos esforçando tanto. Também passei pela ideia de o rico ter vergonha. E não é isso. Se você não reconhece o status do outro no Brasil, o outro te lembrará quem ele é. E vi que havia um entendimento daquilo que faz o rico rico que é muito distante do dinheiro. As “coisas” não são marcadores de status, mas catapultam os indivíduos para lugares em que eles têm acesso a benesses que o resto mortais não têm. As “coisas” são alavancas, rotas de acessos. Mas tem um dilema: ao contrário do sistema americano, em que dinheiro é definidor de riqueza, no Brasil não é o dinheiro que diz quem a pessoa é, ela precisa ostentar a “coisa” e contar com a imaginação do outro para ser reconhecido como rico. Nossa imaginação social é frágil porque acha que o rico é sempre quem tem mais “coisas” do que a gente. As “coisas” aqui têm o papel importante de definição de posição na estrutura social brasileira. Minimalismo não pegou no Brasil, a gente é maximalista. 

As redes sociais alteraram a forma como a elite brasileira lida com visibilidade e a ostentação?

Sim! Coitados! No Brasil, temos dois afetos centrais na organização das distâncias: inveja e medo. Todo o mundo tem inveja dos de cima e medo dos de baixo. Os índices de violência têm caído no Brasil e a gente continua sendo um país atravessado pelo medo. Do mesmo modo, todo mundo tem um rico de estimação, no qual fica de olho para fazer igual. O que as redes sociais fizeram foi dar gasolina para esse fogo que é a chama da sociedade brasileira. Então, com rede social a gente sabe rapidamente o que é que temos que fazer para os outros acharem que a gente é melhor. E isso acirrou o medo dos outros. Dificultou muito a vida dos ricos. Com as redes, todo mundo de classes e ambientes distintos tem acesso ao conhecimento, desejo e vontade de comprar os mesmos produtos, falsos ou verdadeiros. É uma contradição brasileira, que os franceses, por exemplo, não vivem. Eles compram acreditando que durarão tanto tempo que netos e bisnetos usarão as “coisas”. O brasileiro não: a gente aposta no melhor couro sabendo que a força desse objeto vai morrer antes do couro. Isso faz com que toda casa no Brasil tenha um entulho. Então o entulho das casas brasileiras aumentará. 

Você virou, de fato, um especialista sobre luxo, ricos e consumo?

Eu estou contando com a sorte da contradição da pesquisa: que nenhum rico se acha rico. Então, não se reconhecem no livro e estão rindo dos ricos. Quando fui publicar o livro, muita gente, amigos, perguntaram se não estava com medo de eles fecharem as portas. Eu não tinha ideia porque dizia que eles não vão se ver no livro. Antes de publicar, comecei a contar histórias que estavam no livro e eles riam, diziam “vejam como a elite brasileira é”. Eles acham que falei de outros ricos, não acham que fizeram parte da pesquisa.

"Mas tem um dilema: ao contrário do sistema americano, em que dinheiro é definidor de riqueza, no Brasil não é o dinheiro que diz quem a pessoa é, ela precisa ostentar a “coisa” e contar com a imaginação do outro para ser reconhecido como rico"

Michel Alcoforado, antropólogo

 

postado em 17/09/2025 12:17 / atualizado em 17/09/2025 15:14
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