
Entre disputas políticas e estéticas, Brasília, momentaneamente, afirmou-se como um padrão progressista moderno, frente ao embate com valores arraigados ao estilo neocolonial, pelo que confirma a narrativa do documentário Quando o Brasil era moderno, filme integrado à seleção do último festival É Tudo Verdade, no qual o diretor Fabiano Maciel conquistou menção honrosa. Ainda sem data definitiva, o longa estará, em breve, na programação dos cinemas da capital vista como monumental pilar para o 'projeto de Brasil', ainda em construção desde os anos de 1930.
No documentário, em que despontam figuras como o arquiteto Guilherme Wisnik e ilustrações de obras em cinema de nomes como Glauber Rocha, Luiz Sergio Person e Sylvio Back, há veementes visões como a do historiador Maurício Lissovsky (capaz de avaliar: "Faltou povo no moderno ou faltou moderno no povo") e reclames como o do urbanista Paulo Mendes da Rocha, que pontuam "(o Brasil como) um país muito atrasado".
Nisso, a presença destacada do professor aposentado de arquitetura da UnB José Carlos Coutinho vem calibrada de fundamento: "Os nacionalistas que se opunham a influências europeias, como era o caso de José Marianno Filho, que dizia 'se é para copiar, copiamos o que é nosso', e ia buscar os modelos de arquitetura portuguesa na Bahia, em Minas Gerais, em Pernambuco para alimentar uma nova corrente baseada nas formas portugueses. Mas era um equívoco também. Não era para copiar nem da Europa nem do passado, é para criar formas novas coerentes com o tempo em que se vive". Também muito participativo e crítico, o pesquisador de arte Ítalo Campofiorito (morto em 2020) figura entre entrevistados.
Destino acertado
Tal como no filme Brasília 65 anos — Do sonho ao concreto: Heróis anônimos (em breve, no streaming), Quando o Brasil era moderno se detém na implantação do modelo de nação que desembocasse em Brasília. A jornada do diretor Fabiano Maciel (versado em arquitetura moderna brasileira, desde o longa A vida é um sopro, sobre a trajetória de Niemeyer) demandou mergulho em realização ao longo de uma década. Tudo para em 2018 enfrentar situação de atravancamento pelo governo Bolsonaro. Mas, tendo no leme estudos profundos do antropólogo Lauro Cavalcanti e a fortaleza de críticos (de áreas diversas) em seis cidades brasileiras, Fabiano completou a jornada. No complexo quadro de lembranças de pensadores de seleta estirpe, com Carlos Drummond de Andrade, Burle Marx, Le Corbusier e Lucio Costa, à frente, despontam momentos impagáveis como o do relato de Niemeyer, sobre ele e o ministro Gustavo Capanema circundando, à luz de vela, o Monumento à Juventude Brasileira (1947), a fim de atestar o impacto visual da escultura. São ângulos privilegiados.
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Entrevista // Fabiano Maciel, cineasta
Por onde, e em que circunstância, Brasília afirma a capacidade de projetar modernidade? Foi algo encerrado apenas na arquitetura?
Brasília foi o máximo da nossa utopia tropical, uma cidade feita em um momento no qual era realmente possível se acreditar em mudanças. Ficou sim na casca, ficou somente na estética. E vai se propagar novamente quando as fichas se voltarem realmente para projetos inclusivos. Mas com este Congresso...
Estética, educação e desenvolvimento, todos elementos discutidos no filme, estão alinhados numa base que ruiu no Brasil?
A destruição da educação sempre foi projeto da classe dominante, esta é a frase do Darcy Ribeiro, repetida à exaustão. O governo Tarcísio (de Freitas) precisou de apenas dois anos para tirar a USP do ranking das 100 melhores universidades do mundo. Sobre o desenvolvimentismo: o Lula tenta retomar, apesar dos juros do Banco Central e da imprensa que finge que não vê os investimentos que estão sendo feitos; investimentos aliás, que ele negocia em suas viagens. Sobre estética, o buraco é mais embaixo. O grande mérito do Tropicalismo foi nos libertar do bom gosto, da obrigatoriedade de nos ajoelharmos para a alta cultura. O problema é que hoje, a elite que poderia consumir beleza, tem um péssimo senso estético. Nada supera o mau gosto das elites brasileiras. Posso dar um exemplo candango: a qualidade da arquitetura e do urbanismo nas Asas (Norte e Sul) e o horror que é Águas Claras, que pode ser qualquer lugar do país. É o mesmo horror em Camboriú, Osasco, em Alphaville ou na Barra.
Quais os dados que mais te surpreenderam na pesquisa para o longa?
A incrível semelhança entre as disputas feitas nos anos 1930 com as disputas atuais. Houve dentro do gabinete do ministro Gustavo Capanema, uma luta ferrenha entre educadores, arquitetos e artistas de vanguarda contra intelectuais conservadores de extrema-direita. Outras surpresas: a relevância que a arquitetura tinha nas discussões sobre o país e como a questão estética estava completamente conectada com a questão ideológica.
A curto prazo, vislumbra utopia concreta para nortear o Brasil?
Mesmo sendo pessimista, me obrigo a ter um pingo de fé no futuro. Caso o contrário, nem levantaria da cama. A utopia é sempre necessária.
Assumir vários postos no filme (direção, roteiro, montagem e pesquisa) formatou uma visão monolítica? Onde crê que seu pensamento mais tenha 'respirado" em face a complemento de terceiros?
Vale lembrar que este filme se inspira inicialmente no livro Moderno e brasileiro, do arquiteto e antropólogo Lauro Cavalcânti. Também fui muito influenciado pelas pesquisas de Carlos Berriel, Rafael Cardoso e Roberto Segre. Eu ouvi muitos arquitetos, historiadores e intelectuais. Mas, sim, talvez eu tenha uma visão monolítica no sentido de que, a minha tese, se é que posso chamar assim, é de que estamos sempre recomeçando, estamos sempre empurrando com a barriga, dando um passo para a frente e dois pra trás. E isto porque nunca ousamos resolver os pontos principais: educação e distribuição de renda. Eu acho que o Brasil não resolveu ainda a escravidão, Canudos, Contestado, Eldorado do Carajás. É a frase emblemática do (cineasta Luiz Sérgio) Person em São Paulo S.A.: "recomeçar, recomeçar sempre, recomeçar novamente..."
O que pode ser inferido das mortes nebulosas de Anísio Teixeira, JK e as mortes políticas de Getúlio Vargas e Jango? Qual a figura mais odiada pela direita no país hoje em dia? Quem é, na ótica deles, "o vilão"?
Paulo Freire, um educador. Anísio Teixeira, assim como Darcy Ribeiro, ousou universalizar o ensino de qualidade no país. Silenciaram o Anísio, mas o legado dele, mesmo que, aos trancos e barrancos, continua por aí. Darcy era malandro demais para se deixar abater. Morreu lutando. Sobre JK, era um social-democrata. Como o Brasil poderia ser melhor se os adversários da esquerda fossem sociais-democratas! Sobre Getúlio Vargas, é muito fácil demonizar Getúlio hoje. Mas eu sou gaúcho e neto de trabalhistas. Getúlio pensou um projeto para o país. Um projeto que incluía o povão na jogada. E a gente sabe o que acontece com quem ousa mexer neste bananal escravagista. Getúlio teve que se matar. Jango preferiu o exílio. Brizola, infelizmente, não conseguiu ser presidente, mas o que fez no Rio foi o bastante para despertar o ódio mais profundo da elite carioca, representada como sempre, pela família Marinho. Os verdadeiros vilões nacionais são os mesmos de sempre: a nossa elite escravocrata e reacionária. Até algumas décadas atrás, essa elite tinha um projeto para o país. Torto, mas tinha. Agora, eles só querem participar da rapina.
Sonho em construção
Foi nos esforços da Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura (Abrasci) e do Arquivo Público do DF que despontou a feitura do documentário Brasília 65 anos — Do sonho ao concreto: Heróis anônimos. Com carreira iniciada em 1996, e à frente de obras detidas em esporte, música e óperas, o diretor Walther Neto posiciona o filme entre os que mais aprecia, dada a relevância do conteúdo. "A riqueza do material está no seu valor histórico, no cerco a personagens e datas especiais. Junto com os historiadores e pesquisadores, procurando os materiais, alinhamos digitalização de imagens com casamento demandado pelo roteiro, uma vez que o acervo ofertado é enorme", explica o cineasta.
Imagens raras de filmes 16mm e 35mm foram pinçadas para inicialmente figurarem na celebração do aniversário da capital (em abril passado). Três meses depois, as produtoras WN Produções e Marc Films se uniram para ampliação da rede exibidora. "Estamos na fase de apresentação do documentário, junto a pequenos eventos, e, na sequência, ele estará no circuito de streaming (na Band Play e no Arte 1). Noutra etapa, faremos os acordos com as tevês públicas", conta o realizador Walther Neto. Na sinopse ganha peso o resgate de "histórias (audiovisuais) perdidas", como as de Israel Pinheiro e de Bernardo Sayão. Com foco detido em JK, Lucio Costa, Niemeyer e ainda em anônimos candangos, o filme se apoia na trajetória de construção da cidade, entre 1957 e 1960.
A organização encontrada no Arquivo Público foi agente natural de facilidade. "Na época, os filmes não tinham áudio direto, e sim textos narrados da época. As vozes que reverberam no filme são as narrações da época — o documentário não tem entrevistas feitas nos dias de hoje, ele tem uma condução feita em of pelo Ator Jackson Antunes, com o objetivo de contextualizar os fatos históricos e valorizar os feitos do período, mas há áudios da época que contam, pelo ponto de vista dos anos 50, com linguagem e características da época, como componentes ao estilo de cápsula do tempo. O conteúdo mostra a realidade da obra, imagens reais e inéditas do período da construção, em 65 minutos", pontua Walther Neto.
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Para além dos relatos de mulheres, dentro das obras (à época em curso), pesam dados de candangos, "personagens importantes do documentário". Músicas originais foram refeitas para o documentário. "Valorizamos estilos e formas da época, e trazemos clássicos com Luar do sertão, apresentadas de várias formas, e o tema do folclore mineiro Peixe vivo, e, em outros trechos, a trilha tem uma função emocional e de apoio às narrações. Incrementamos, com uma canção inédita de Dedé Paraiso, nos créditos finais", conta Walther Neto.
Qual seria o impacto do documentário, na visão do diretor? "Vejo como muito grande, pois precisamos sempre preservar o passado, valorizar os nossos heróis, para poder entender o presente, e construir o futuro", analisa Neto. Para ele, sem o entendimento da memória nacional ficamos "à deriva, sem referências". "Obras como a de Brasília transformaram a história do Centro-Oeste brasileiro; o desenvolvimento que vemos hoje se deve a todo esse movimento que trouxe a capital federal para o centro do Brasil", conclui.
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