
No início desta semana, o mundo foi surpreendido com a notícia do falecimento do papa Francisco, vítima de um acidente vascular cerebral, aos 88 anos. Em meio a homenagens e reflexões sobre seu legado, surge também o questionamento sobre a sucessão de seus bens pessoais — uma questão que adquire contornos específicos devido à sua singular posição como líder religioso e chefe de Estado.
Embora o papa exerça funções espirituais e políticas, ele também é, juridicamente, uma pessoa física, com direitos e deveres civis. Dessa forma, pode possuir bens particulares, como objetos de uso pessoal e eventuais economias. Tais bens, se existentes, podem ser objeto de testamento e, após sua morte, submetidos a inventário. O papa tinha apenas uma irmã viva, María Elena Bergoglio, que reside na Argentina. Doze anos mais jovem que o Santo Padre, eles se veem pessoalmente desde que ele assumiu o pontificado.
O Vaticano divulgou no dia da morte de Francisco o testamento do Pontífice, redigido em 29 de junho de 2022. O documento reafirma a conhecida simplicidade de Francisco e trata apenas de suas últimas vontades como o local e a forma do seu sepultamento, não mencionando a destinação de bens materiais. Isso sugere que, se possuía bens pessoais, esses foram tratados em documentos privados ou simplesmente não foram objeto de disposições específicas.
No testamento, o santo Padre expressa o desejo de ser sepultado na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, entre as capelas Paulina (Capela da Salus Populi Romani) e Sforza. O pontífice também solicitou que seu túmulo fosse simples, ao nível do chão, sem ornamentações, contendo apenas a inscrição "Franciscus". Determinou ainda que os custos de sua sepultura fossem arcados por um benfeitor, conforme instruções previamente confiadas ao arcebispo Rolandas Makrickas, comissário extraordinário da Basílica.
Segundo o advogado do escritório Mota Kalume e especialista em direito sucessório Guilherme Malta, é fundamental distinguir os bens pessoais do papa daqueles associados ao papado. "A maioria dos bens vinculados à função papal — como imóveis, obras de arte, relíquias e recursos financeiros — pertence à Santa Sé e é administrada por órgãos específicos, como a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA)", explica.
Dessa forma, os bens utilizados no exercício do ministério papal são destinados exclusivamente ao funcionamento da Igreja e não integram o patrimônio pessoal do pontífice. Ao falecer, portanto, o papa não transmite esses bens a herdeiros, pois permanecem sob a administração da Santa Sé, assegurando a continuidade das atividades e serviços religiosos.
O advogado afirma que não seria exagero dizer que o papa Francisco, provavelmente, não deixou bens pessoais a inventariar. "Seu legado é o de um homem profundamente generoso, humilde e despojado — traços que refletem suas raízes na Companhia de Jesus, a Ordem Jesuíta, cujos membros professam votos de pobreza, castidade e obediência", detalha.
Aplicação do Código Civil Brasileiro
Caso o papa Francisco tivesse falecido em território brasileiro e seus bens pessoais fossem passíveis de sucessão segundo o ordenamento jurídico local, nos termos do Código Civil, seria instaurado processo de inventário com a finalidade de apurar o patrimônio deixado.
Guilherme Malta explica: "Nos termos dos artigos 1.857 e seguintes do Código Civil, a vontade testamentária do cujus assumiria papel central na definição do destino de seu patrimônio, uma vez que, em regra, o papa, por sua condição canônica de celibato e vida consagrada, não possui herdeiros necessários." Dessa maneira, não haveria reserva da legítima, o que conferiria ampla liberdade para dispor de seus bens por testamento.
O especialista também ressalta que o ordenamento brasileiro admite diversas formas testamentárias — pública, cerrada e particular —, além de reconhecer a validade de testamentos internacionais, desde que observados os requisitos formais e materiais exigidos.
"Ainda que a sucessão envolvesse bens situados em outros países ou beneficiários estrangeiros, os bens localizados no Brasil, caso houvesse, estariam sujeitos à jurisdição nacional, nos termos do art. 10 do Código de Processo Civil e do art. 7º da LINDB", afirma. Assim, a execução da vontade testamentária observaria a legislação brasileira, assegurando a eficácia e validade dos atos de última vontade dentro dos limites impostos pela ordem pública nacional.
Conclave
O conclave é o processo realizado pela Igreja Católica para eleger um novo papa, iniciado após a morte ou renúncia do pontífice. O termo vem do latim "cum clavis", que significa "fechado à chave", em referência ao isolamento dos cardeais durante a votação. O ritual foi oficializado em 1274, durante o Primeiro Concílio de Lyon, e atualmente é regido pela constituição apostólica Universi Dominici Gregis, de 1996, promulgada por João Paulo II.
Durante o período conhecido como Sé Vacante, em que não há um papa, a Igreja é conduzida por um governo provisório, liderado pelo camerlengo — atualmente o cardeal Kevin Joseph Farrell —, que também é responsável por organizar o conclave. Podem participar da eleição até 120 cardeais com menos de 80 anos.
A votação, secreta e impressa, ocorre entre 15 e 20 dias após a vacância do cargo, sendo necessária uma maioria de dois terços dos votos para a escolha do novo pontífice. Enquanto isso, a Igreja cumpre uma série de ritos solenes, entre os quais se destacam as cerimônias fúnebres do papa Francisco.
Testamento na íntegra
"Miserando atque Eligendo
Em Nome da Santíssima Trindade. Amém.
Sentindo que se aproxima o ocaso da minha vida terrena e com viva esperança na Vida Eterna, desejo expressar a minha vontade testamentária somente no que diz respeito ao local da minha sepultura.
Sempre confiei a minha vida e o ministério sacerdotal e episcopal à Mãe do Nosso Senhor, Maria Santíssima. Por isso, peço que os meus restos mortais repousem, esperando o dia da ressurreição, na Basílica Papal de Santa Maria Maior.
Desejo que a minha última viagem terrena se conclua precisamente neste antiquíssimo santuário Mariano, onde me dirigia para rezar no início e fim de cada Viagem Apostólica, para entregar confiadamente as minhas intenções à Mãe Imaculada e agradecer-Lhe pelo dócil e materno cuidado.
Peço que o meu túmulo seja preparado no nicho do corredor lateral entre a Capela Paulina (Capela da Salus Populi Romani) e a Capela Sforza desta mesma Basílica Papal, como indicado no anexo.
O túmulo deve ser no chão; simples, sem decoração especial e com uma única inscrição: Franciscus.
As despesas para a preparação da minha sepultura serão cobertas pela soma do benfeitor que providenciei, a ser transferida para a Basílica Papal de Santa Maria Maior e para a qual dei instruções apropriadas ao Arcebispo Rolandas Makrickas, Comissário Extraordinário do Cabido da Basílica.
Que o Senhor dê a merecida recompensa àqueles que me quiseram bem e que continuarão a rezar por mim. O sofrimento que esteve presente na última parte de minha vida eu o ofereço ao Senhor pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos.
Santa Marta, 29 de junho de 2022"