Innocence Project Brasil

Innocence Project e a reconstrução da verdade no caso Antônia Edilene

Antônia Edilene foi condenada em 2021 por suposta omissão no estupro da filha, ocorrido em 2012 e cometido por seu ex-namorado. Mesmo sem provas que a incriminassem, foi presa quase dez anos depois, após ser incluída na denúncia em 2015

 A advogada Flavia Rahal e Antônia Edilene no dia em que saiu decisão -  (crédito: Innocence Project Brasil)
A advogada Flavia Rahal e Antônia Edilene no dia em que saiu decisão - (crédito: Innocence Project Brasil)

Mais difícil do que provar que não cometeu um crime é ter que provar que não se omitiu diante de um, especialmente quando se fez tudo que estava ao próprio alcance. Esse foi o caso de Antônia Edilene, condenada injustamente sob a acusação de ter se omitido diante do estupro de sua filha, Francisca Jamile e inocentada com auxílio do Innocence Project Brasil.

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A tragédia que marcou a família de Antônia teve início em 2012, quando o então companheiro de Antônia e pai de seu quinto filho abusou de Francisca, de apenas 12 anos. Naquele período, Antônia trabalhava como costureira, saindo de casa às cinco da manhã e retornando apenas por volta das 20 horas. 

De acordo com a diretora e uma das fundadoras do projeto e responsável pelo caso, Flávia Rahal, Antônia sustentava sozinha os cinco filhos  e, embora o agressor fosse pai de um dos filhos, ele nunca chegou a morar com a família, por decisão dela. Ainda assim, ele tinha acesso à casa e aparecia eventualmente para visitar o filho, que na época tinha apenas quatro anos. Foram nesses momentos de visitas, enquanto a mãe trabalhava e Francisca ficava responsável por cuidar do irmão, que Marcos se aproveitou da vulnerabilidade da menina para cometer os abusos.

Ao ter conhecimento dos casos de estupro, a primeira atitude de Antônia foi confrontar Marcos, seu ex-companheiro, proibi-lo de visitar a casa e cortar relações. No entanto, não foi ela a responsável por registrar o Boletim de Ocorrência contra o abusador e sim o pai da vítima. Além disso, ao longo das investigações o Ministério Público indicou algumas testemunhas, entre elas uma vizinha, que segundo Flávia, era uma  uma senhora idosa e que, na época, afirmava ter problemas de memória. 

"Em seu depoimento, ela fez uma declaração que, somada ao fato de não ter sido Antônia a responsável por informar o caso às autoridades, acabou fazendo com que o Ministério Público a aditar a denúncia original, a incluindo como omissa diante dos abusos sofridos pela filha", detalha a advogada. 

Antônia Edilene respondeu a todo o processo em liberdade. Os fatos ocorreram em 2012, e ela permaneceu solta até 2021, quando a condenação se tornou definitiva e após ser presa, seu caso chegou até o Innocence Project Brasil através Defensoria Pública do Ceará, estado em que o caso ocorreu, pelo defensor público Emerson Castelo Branco. Flávia Rahal explica que o defensor acompanhava o caso porque Edilene estava cumprindo pena, e ele tinha acesso às informações sobre a situação dela.

"O que chamou a atenção dele, e depois a nossa, foi o fato de que a própria vítima, a filha, estava indignada com a condenação da mãe", diz. A advogada afirma que quando Antônia foi presa, a Francisca Jamile, já maior de idade, revoltou-se. "Ela dizia não entender como a justiça podia responsabilizar a mãe pelos estupros que ela havia sofrido. Pelo contrário: ela contava que a mãe sempre a apoiou, que foi seu ponto de segurança para ela superar o que tinha passado", completa.  

A partir da iniciativa da própria filha e do defensor Emerson Castelo Branco, o projeto deu início à busca por provas concretas de inocência, requisito fundamental para que o caso pudesse ser assumido pela iniciativa. Assim, em parceria com a Defensoria Pública, que conduziu as ações locais, foi iniciada uma investigação defensiva com o apoio dos advogados em São Paulo.

"Chamamos várias pessoas que não haviam sido ouvidas durante o processo criminal: o filho mais velho da Antônia, uma vizinha e um rapaz que estava no bar onde o Marcos trabalhava e morava", conta Flávia. 

A advogada explica que essas pessoas foram novamente chamadas, pois, de acordo com Francisca, Jamili Marcos abusou dela três vezes: a primeira passando a mão nela, a segunda, com mais força  e a terceira, quando ele tentou efetivamente consumar o estupro, momento em que a Antônia Edilene chega em casa, flagra os dois no quarto da filha. 

Nesse momento, ele vai embora e ela pergunta para a filha o que havia acontecido e ela que, até então, nunca havia contado nada, confirma que estava sendo abusada. Em seguida, Antônia Edilene chama o filho mais velho e segue para o bar onde seu ex-companheiro trabalhava e morava para tirar satisfações com ele. Chegando lá, ela o confronta, ele admite o que fez, e ela parte para cima dele fisicamente. 

Diante da situação, o filho e um homem que também estava no bar tentam contê-la. "Nesse momento, ela grita para ele: 'Você nunca mais vai colocar os pés na minha casa. Está proibido de entrar lá!'  E, de fato, a partir dali, ela rompe totalmente a relação com ele, mesmo sendo ele o pai do filho mais novo", conta a advogada. 

Além do relato sobre a reação de Antônia Edilene ao descobrir o abuso que, segundo Flávia Rahal, foi "absolutamente incompatível com a de uma mãe omissa", também foram ouvidas pessoas próximas que descreveram o estado emocional em que ela ficou e o quanto o episódio a abalou, pois ela se culpava por algo que, na verdade, não poderia ter evitado.

"O que aconteceu é que, após esse episódio, não foi ela quem procurou a polícia, porque entrou em um estado de profunda tristeza, ficou abalada emocionalmente, o que é perfeitamente compreensível diante de tudo o que viveu. Mas o caso acabou chegando às autoridades, porque o pai registrou o crime", explica Flávia.

Durante a investigação defensiva, diversas pessoas próximas foram ouvidas: vizinhas, familiares e até o rapaz do bar. Todas confirmaram a reação imediata e contundente de Edilene ao saber do abuso.

A própria Francisca Jamile também foi ouvida novamente, já adulta, com mais tranquilidade e consciência. Ela contou que nunca havia revelado nada à mãe por medo, pois Marcos a ameaçava, dizendo que algo aconteceria se ela contasse o que se passava. Jamile lembrou ainda que, em certa ocasião, a mãe chegou a perguntar se o homem tinha algum comportamento inadequado, e ela negou por medo. A filha relatou, emocionada, que foi a mãe quem a ajudou a se reerguer e reconstruir a vida, destacando que o apoio de Edilene foi essencial.

Com base nesse trabalho, a equipe realizou uma ação de produção de provas, formalizando os depoimentos de todos perante o juiz e o Ministério Público. Com a conclusão dessa etapa, foi protocolada uma ação de revisão criminal, pedindo a reavaliação da condenação anterior. 

Após dois anos e sete meses detida, Edilene foi libertada em agosto de 2024, e, em setembro, sua inocência foi reconhecida por decisão unânime do Tribunal de Justiça do Ceará.

"Foi um momento muito comovente, a Antônia sempre deu tudo de si pelos filhos e ainda assim, viu-se colocada no papel de culpada pelo maior sofrimento da filha, que foi ter sido violentada. E a própria filha também vivia tomada pela culpa de ver a mãe presa. Durante o julgamento, foi possível perceber a leveza e o alívio que elas sentiram", declara a advogada. 

Para Flávia Rahal, o momento foi, acima de tudo, o reencontro de uma família que havia tido um enorme sofrimento. "Primeiro, pela tragédia do estupro; depois pela injustiça da prisão. Foi um instante de reparação, de inocência reconhecida e de dignidade restaurada", diz. 

Alerta para Justiça Brasileira 

Uma jovem de 26 anos, morreu em 26 de outubro, apenas dois meses após ser absolvida das acusações de homicídio que a mantiveram presa preventivamente por quase seis anos. Damaris Vitória Kremer da Rosa havia sido acusada de atrair a vítima, Daniel Gomes Soveral, para o local onde ele foi assassinado em 2018. Desde o início do processo, ela negou qualquer envolvimento, afirmando que havia sido estuprada pela vítima e que o verdadeiro autor do crime agiu sozinho, inclusive incendiando o carro onde o corpo foi encontrado.

Durante o período em que permaneceu presa, Damaris foi diagnosticada com câncer do colo do útero. Mesmo diante de laudos médicos que comprovavam a gravidade da doença, os pedidos de prisão domiciliar apresentados pela defesa foram negados pela Justiça e pelo Ministério Público, sob a justificativa de que os documentos eram “meros receituários médicos”. A medida só foi concedida em março de 2025, quando o quadro de saúde da jovem já estava bastante debilitado.

Em 13 de agosto de 2025, o júri popular reconheceu sua inocência e determinou sua absolvição. Pouco mais de dois meses depois, Damaris morreu em casa, sem ter tido tempo de retomar a vida fora da prisão. 

Flávia Rahal afirma que esse caso deve acender um alerta para a Justiça brasileira: “acho que, se não acender, há algo muito errado. Todo caso de um inocente preso deveria acender um alerta. Se o caso de uma moça inocente, que ficou presa e faleceu dois meses depois, não fizer com que os olhos de quem atua no sistema se voltem para ele, na tentativa de aprimorá-lo, eu não sei mais o que pode fazer”.

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postado em 06/11/2025 05:30 / atualizado em 07/11/2025 10:06
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