Visão do Direito

Democracia e Poder Legislativo no século XXI: o papel do Parlamento em tempos de incerteza

"Nesse contexto em que a democracia e as instituições enfrentam talvez o seu maior teste de legitimidade desde a metade do século passado, temos que compreender melhor as exigências por renovação que a sociedade vem apresentando"

27/08/2015. Crédito: Gustavo Moreno/CB/D.A Press Brasil. Brasília - DF. Entrevista com o ministro Gilmar Ferreira Mendes, em seu gabinete, no Supremo Tribunal Federal. -  (crédito: Gustavo Moreno/CB/D.A Press)
27/08/2015. Crédito: Gustavo Moreno/CB/D.A Press Brasil. Brasília - DF. Entrevista com o ministro Gilmar Ferreira Mendes, em seu gabinete, no Supremo Tribunal Federal. - (crédito: Gustavo Moreno/CB/D.A Press)

Por Gilmar Ferreira Mendes* — Em minhas falas e publicações recentes, no Brasil e no exterior, tenho destacado o triunfo da nossa democracia, que, sobretudo devido à atuação firme do Poder Judiciário em sua defesa, tornou-se um case internacional. Mas nesse texto trarei algumas reflexões sobre o papel do Parlamento nesses tempos de incerteza e crises, sobretudo políticas.

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Desde setembro, num intervalo de menos de dois meses, vimos: o governo de Madagascar ser derrubado por suas forças armadas após manifestações massivas contra a corrupção; violentos protestos contra gastos para a Copa do Mundo de 2030 e exigindo mais investimentos em saúde e educação no Marrocos; centenas de pessoas mortas na Tanzânia em protestos contra resultados eleitorais; e, mais próximo de nós, milhares de jovens tomarem as ruas do Peru em manifestações contra o governo e o Congresso, que continuaram mesmo após a destituição da presidente Dina Boluarte.

Na origem destes intitulados "Protestos da Geração Z", os analistas identificam uma inquietação global — impulsionada pela conectividade digital — gerada, sobretudo, pela insatisfação com a desigualdade econômica, pela falta de perspectiva de futuro e pela indignação com a ausência de soluções pela política.

Mas este fenômeno já vem de antes: essa Geração Z sucede os Millennials que tomaram as praças em 2011 com o Occupy Wall Street em Nova Iorque e os Indignados do 15-M na Espanha. No Brasil, tivemos os protestos de 2013, quando o que começou como uma reação a um aumento de vinte centavos na tarifa de transporte em São Paulo levou a uma explosão de mostras de insatisfação e de aversão aos políticos e à política. E que não é exclusividade dos jovens.

Segundo Castells, mais de dois terços dos habitantes do planeta acham que os políticos não os representam, que partidos priorizam interesses próprios e que governos são corruptos e opressores.

Nesse contexto em que a democracia e as instituições enfrentam talvez o seu maior teste de legitimidade desde a metade do século passado, temos que compreender melhor as exigências por renovação que a sociedade vem apresentando. As instituições políticas, historicamente estruturadas para conferir estabilidade e solidez ao agrupamento social, têm se mostrado incapazes de se adaptar à instabilidade e liquidez — para usar a terminologia de Zigmund Baumam — dos tempos atuais, nos quais tudo que é sólido se desmancha no ar.

O professor catalão Gonçal Mayos chama de políticas do desconcerto ao cenário político iniciado com a crise de 2008, em referência "a la desorientación que provoca tanto en los expertos políticos como en una población desconcertada y angustiada". Fernando Henrique Cardoso, em seu livro Crise e reinvenção da política no Brasil, afirma que "uma nova sociedade está se formando e não se vê claramente que instituições políticas poderão corresponder a ela". E Castells, por sua vez,sentencia que a "democracia liberal está caindo aos pedaços porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos".

Apesar da importância desse alerta, o professor espanhol Daniel Innerarity, em A política em tempos de indignação, afastando o tom catastrófico dos que vaticinam a morte da democracia, nos lembra que na verdade ela é constitutivamente caracterizada pela incompletude e pela imperfeição, e as promessas não cumpridas sempre despertarão desconfiança e frustração na população. Afirma ele que "a história da democracia é a história da sua crise; a crise da democracia não é uma fase transitória, e sim uma situação permanente, porque é um sistema aberto". Assim, são justamente as diversas e inevitáveis crises da democracia que permitem que ela se reinvente continuamente, e eis seu trunfo.

Desse modo, em suas palavras, "não estamos presenciando a morte da política, e sim uma transformação que nos obriga a concebê-la e a praticá-la de outra maneira". Ele lembra que "o surgimento do novo é algo tão antigo quanto a humanidade", e que "apenas a falta de memória pode ser a explicação para nosso desconcerto ou falta de entusiasmo diante dessa ruptura que faz parte do velho ciclo de nossas democracias".

Assim, assumindo que não há solução fora da democracia, apenas mais democracia pode fazer frente ao seu atual desprestígio.

Como afirma FHC, "o aprofundamento da democracia passa pela reconstrução dos laços de confiança entre a população e o poder". E aí reside o papel do Parlamento.

Compete às instituições políticas — e ao Poder Legislativo, em especial — reconhecer as novas (e as antigas) demandas do povo e provê-las, renovando-se antes que os ventos da mudança as arrastem. O Poder Judiciário colaborará sempre que chamado, nos limites de sua competência. Mas é no Legislativo que ocorre a mediação democrática: é ali que a frustração popular deve ser ouvida, processada e convertida em reformas efetivas.

Daí o grande papel — e o maior desafio — do Parlamento contemporâneo: reconectar-se com a sociedade.

Demonstrar, com resultados, que a democracia representativa não apenas continua sendo a melhor forma de governo, como é a única capaz de responder às incertezas do nosso tempo, oferecendo estabilidade, horizonte de futuro, liberdade e direitos. Cabe ao Legislativo transformar essa promessa em realidade e restaurar, por entregas concretas, o vínculo de confiança que sustenta a vida democrática.

Outro fator urgente a ser enfrentado é o extremismo sectarista. Na era das redes sociais — para onde a arena pública foi transportada —, a fragmentação do debate público em bolhas informacionais e câmaras de eco radicalizadoras, onde as pessoas se sentem mais à vontade para mentir, ofender e cometer crimes, transforma o espaço público em terra sem lei, hostil e inóspita, o que representa uma ameaça sem precedentes à possibilidade mesma da política como ação conjunta entre iguais. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como as Democracias Morrem, afirmam que "se uma coisa é clara ao estudarmos colapsos ao longo da história, é que a polarização extrema é capaz de matar democracias".

De resto, cabe ao Parlamento dar o exemplo: mostrar que é possível divergir sem desqualificar, debater sem agredir; que adversário político não é inimigo. A democracia vive do confronto de ideias e de projetos, e esse confronto exige o reconhecimento recíproco do direito de existir, disputar e governar.

Não há saída fora da democracia, e não há democracia sem um Parlamento independente, forte, aberto e responsivo. Que cada crise seja tratada como ensejo de aperfeiçoamento; que a divergência volte a ser método de construção, não arma de destruição; que a palavra retome o lugar do insulto; que a verdade prevaleça sobre as fake news.

Para tanto, é preciso reconectar a política com as necessidades reais das pessoas, entregando resultados que devolvam confiança e esperança ao povo. O Parlamento deve retornar ao imaginário popular como a casa do diálogo, do respeito e das soluções, para que atravessemos a incerteza com firmeza, e encontremos, na liberdade, na prosperidade, na justiça social e na democracia, o nosso destino.

Ministro STF*

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Por Opinião
postado em 06/11/2025 04:00
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