
O confronto direto com facções criminosas não é a solução para combater a violência e o domínio do crime organizado no Rio de Janeiro. É a avaliação do presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), Marcos Camargo, especialista em gestão de Políticas de Segurança Pública. Ele sustenta que, sem prisões de lideranças, enfraquecimento financeiro e corte da influência política que decorre da infiltração do crime no Poder Público, não há redução efetiva.
Formado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Camargo está na Polícia Federal desde 1999 e já atuou em diversas áreas da instituição, inclusive como chefe do laboratório de química forense e na área de investigação contra o narcotráfico.
O presidente da APCF aponta que a perícia é fundamental para esclarecer as circunstâncias das mortes, rastrear a origem de armas, identificar padrões de produção de drogas e quantificar o impacto das apreensões. “Somente com a ciência e com a união das forças em torno de dados confiáveis, será possível entender a magnitude do crime e medir resultados reais”, afirma.
A megaoperação realizada no Complexo do Alemão e no Morro da Penha, no Rio de Janeiro, mobilizou um grande efetivo das forças de segurança e resultou em confrontos, prejuízos à rotina dos moradores e uma série de questionamentos sobre sua eficácia e impactos sociais. Qual a sua avaliação sobre o resultado desse confronto?
A avaliação é ruim. Mais uma vez se busca combater o crime organizado e os problemas de segurança pública com uma lógica arcaica de “medir forças” com o crime. O enfrentamento armado e o uso da força sozinhos não resolvem o problema. Isso resulta em confronto aberto em áreas controladas, com mortes de criminosos, policiais e população civil, além da paralisação de serviços públicos e de traumas gigantes nas comunidades vulneráveis. Infelizmente, esse é o resultado esperado quando a única forma de se enfrentar a criminalidade ainda é o combate com medição de forças.
Houve mais de 100 mortos, na operação mais letal da história do Rio. Acha que esse tipo de embate resulta em mais violência, com bandidos e policiais vingando seus mortos?
O problema é que esse embate não resolve a criminalidade. É preciso políticas públicas e ações de prevenção. Tratar o tema apenas com ações que envolvem violência, além de ineficaz, gera fraturas ainda maiores, que intensificarão essa violência. Não se trata de “vingança”, mas de um ambiente de beligerância que tende a se agravar, com os lados tentando se fortalecer em termos de armas e de mecanismos repressivos, que, quando colocados em confronto, só tendem a escalar a violência.
Na sua opinião, quais foram as falhas evidentes?
O confronto e as mortes são a ponta do iceberg. As causas são mais profundas: ausência de Estado, falta de políticas públicas, baixa resolução de crimes e infiltração do crime organizado nas estruturas do Poder Público são alguns dos problemas. Sobre a operação, de forma geral, a polícia tenta evitar o embate. Os policiais querem cumprir seu trabalho e voltar para suas famílias. Quando ocorrem tantas mortes, algo deu muito errado. O principal erro costuma ser a falta de planejamento e equívocos nos dados de inteligência. Com planejamento, dados concretos e informações de inteligência, o risco de confronto diminui. Uma operação com mais de cem mortos não tem como ter sido bem planejada. É sinal claro de falhas graves em vários níveis.
Especialistas apontam a asfixia financeira como o melhor caminho para combater o crime organizado, como tem ocorrido em São Paulo. Acredita que lá a operação com ação integrada de forças federais e estaduais pode ser considerada um exemplo a seguir?
A integração entre forças é essencial. O crime é complexo, muitas vezes transnacional, e exige atuação conjunta de polícias municipais, estaduais, federais, o que inclui a polícia científica. Há um debate importante sobre isso na PEC da Segurança Pública. A despeito do grave caso atual, nós estamos diante de uma oportunidade de melhorar a atuação da segurança pública por meio de ferramentas que aprimorem essa integração, inclusive com uma melhor estruturação dos repasses financeiros. Quanto à asfixia financeira, ela é importante, mas não é a única solução. Não adianta pegar uma pessoa que cuida da contabilidade de uma facção, por exemplo, e achar que isso, por si só, vai interromper o fluxo do dinheiro. No dia seguinte, eles repõem a posição. É preciso pegar esse cara, mas sabendo que o crime se reorganiza, abre outro flanco, substitui peças. O enfrentamento precisa ser amplo: integração entre forças, políticas sociais, prevenção e repressão. Só cortar o fluxo financeiro não basta. O crime é capilarizado, se adapta e continua.
O crime organizado mais uma vez mostrou sua força no Rio. Dessa vez, deixou claro que está preparado para a guerra. Existe salvação?
Existe, mas não pela via da guerra. Quando o combate se transforma em guerra, os dois lados se armam, e o crime vai continuar se armando. É preciso perguntar: como essas armas chegam? De onde vem o dinheiro? Porque o crime se infiltra no Poder Público e ocupa os espaços que o Estado abandona. Existe salvação. Ela passa por políticas públicas, controle da entrada de armas, enfrentamento da corrupção, combate à infiltração criminosa no Poder Público. A gente precisa se conscientizar de que existe uma infiltração estatal, que existem locais onde o Estado não está fazendo as suas políticas públicas, que existem questões sociais e, a partir disso, trabalhar nesse aspecto para, lá na frente, evitar ou reduzir bastante esse nível de violência.
Há transparência na divulgação de números — prisões, apreensões, feridos e mortos?
O sistema exige transparência. As mortes e os desaparecimentos serão reclamados por familiares, e será preciso verificar se os dados oficiais batem com essas informações. A transparência também depende da atuação imparcial e independente da polícia científica, com exames de local, de balística, de DNA, com reprodução simulada e outros. Entram também os bancos de dados de perfis balísticos e os bancos de dados de perfis genéticos. Diante desses elementos, a gente vai poder ter uma visão cientifica dos fatos e confrontar com eventuais versões. O trabalho das polícias científicas é indispensável. Se não tiver exame de local, de necropsia e outros não saberemos, cientificamente, circunstâncias do que aconteceu ali e ficaremos presos em um jogo de narrativas. A perícia é o que pode pacificar os fatos.
Quando se fala em reduzir o poder das facções, quais indicadores permitem afirmar isso de forma objetiva?
As facções são organizadas, hierarquizadas e capilarizadas. Têm poder financeiro e político, inclusive com infiltração no Estado. Então, reduzir seu poder significa tirá-las dessas estruturas, cortar o vínculo com o sistema que as alimenta. Mas há diferenças entre os grupos criminosos. Em São Paulo, há uma facção dominante, o que dá aparência de estabilidade. No Rio, existe uma disputa de território entre facções e milícias, o que expõe mais o problema. Os indicadores que devem refletir isso são os de redução de domínio territorial, apreensão real de armas, prisões de lideranças, enfraquecimento financeiro e ausência de influência política. Sem isso, não há redução efetiva.
Do ponto de vista da população local, operações dessa escala aumentam ou reduzem o sentimento de segurança?
Essas operações aumentam a sensação de insegurança. A população sabe que essas ações não resolvem o problema, porque os chefões do crime não são atingidos. As pessoas entendem que o sistema vai continuar igual e que, mais cedo ou mais tarde, haverá nova operação. O que se transmite é medo e instabilidade, não segurança. Situações conflagradas como essa não geram qualquer tipo de sensação de segurança.
Esse tipo de ação, realizada de forma pontual, de fato desorganiza o crime armado ou apenas desloca suas atividades?
Pode gerar uma desorganização momentânea e uma pausa nas atividades criminosas, mas isso é temporário. O crime se reorganiza rapidamente. Se essas ações resolvessem, não haveria novas operações com o mesmo padrão de violência e muitas vezes com grande letalidade, como estamos vendo. É um ciclo que se repete. Pode haver uma paralisação breve, mas o problema volta, porque as causas originárias não foram enfrentadas.
A operação produziu apreensões significativas que indiquem impacto real na cadeia financeira do crime?
Depende do que se entende por “significativo”. Apreender 500 kg de cocaína ou 50 fuzis pode parecer muito, mas sem dados científicos sobre o total que circula, é impossível saber se o impacto foi relevante. O Brasil não valoriza políticas baseadas em evidências, que permitam dimensionar o problema. Para mudar isso, é preciso integrar as forças, inclusive a polícia científica, para que os dados sobre produção, apreensão e rotas sejam confiáveis. Sem isso, trabalhamos no escuro. A própria PEC da Segurança Pública ignora a polícia científica, o que mostra o quanto ainda estamos despreparados. Nenhuma força policial isolada consegue enfrentar o crime organizado com eficiência. É preciso integração entre todas, inclusive na área de polícia cientifica, que é quem produz os dados técnicos e comprova, de forma objetiva, o que foi apreendido e qual o alcance disso. A perícia tem papel fundamental nesse processo. Ela permite rastrear a origem de armas, identificar padrões de produção de drogas e quantificar o impacto das apreensões. Somente com a ciência e com a união das forças em torno de dados confiáveis, será possível entender a magnitude do crime e medir resultados reais.
A perícia numa operação como essa é fundamental para a avaliação sobre como ocorreram as mortes. O que a perícia pode esclarecer?
A perícia é essencial. Sem perícia, nunca saberemos, com fatos científicos, o que realmente aconteceu. A lei é clara sobre a indispensabilidade da perícia, preservação dos locais e a cadeia de custódia, porque reconhece a importância da prova científica. A perícia é quem revela a dinâmica dos fatos. É ela que permite reproduções simuladas, exames cadavéricos, microscópicos e balísticos. A verdade dos fatos, inclusive para as próprias forças policiais, depende da perícia. Infelizmente, não é sempre isso que a gente vê na prática. Por isso, o fortalecimento das perícias, por meio das polícias científicas, é tão importante. Sem esse fortalecimento, a garantia legal vira letra morta. O respeito à cadeia de custódia não vai acontecer. A preservação do local não vai acontecer. Os exames periciais vão deixar de ser feitos.

Direito e Justiça
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