
"Vai pulando que nem saci! Você não aprendeu a atirar em policial? A roubar polícia? Agora vai pulando." "E eu dizia: 'Mas eu não fiz nada, eu nem sei o que está acontecendo'."
Foi assim que Igor Barcelos Ortega descreveu o tratamento que recebeu na delegacia, momentos depois de ser baleado na perna. O jovem havia sido reconhecido erroneamente pela vítima de um crime, a partir de uma foto tirada por um policial enquanto ele recebia atendimento médico no hospital.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Igor não era o criminoso que a Justiça procurava. Ainda assim, por causa de um reconhecimento falho e apressado, passou três anos da própria vida preso por um crime que não cometeu.
A história de Igor Barcelos Ortega começa em 2 de outubro de 2016. Naquela noite, ele, o irmão e um amigo participavam de uma festa no bairro Jardim Corisco, em São Paulo. De lá, seguiram para outra balada, no Recanto Verde. Pouco depois de deixar o local para abastecer sua moto, Igor foi atingido por um disparo de arma de fogo.
- Leia também: Quando a medida protetiva se torna injusta: caminhos jurídicos para restabelecer o direito
Levado ao hospital em estado grave, acabou sendo erroneamente identificado como criminoso. A confusão teve início quando um policial tirou uma foto de Igor ainda no leito hospitalar e a mostrou à vítima de um assalto ocorrido a cerca de 24 quilômetros dali, em Guarulhos. A vítima o reconheceu como o homem que havia roubado seu carro e tentado roubar também o veículo de um policial militar, com quem os autores do crime trocaram disparos.
Apesar de existirem provas de que o autor dos crimes não poderia ser Igor Barcelos, ele foi condenado a 15 anos e seis meses de reclusão pelos crimes de roubo e tentativa de latrocínio. Diante da situação, após o trânsito em julgado da condenação, a advogada que atuou em favor do jovem ao final do processo procurou o Innocence Project Brasil para indicar o caso.
Provas da inocência
Dessa forma, Dora Cavalcanti, diretora do Innocence Project Brasil, passou a atuar no processo. Segundo a advogada, havia inúmeras provas sólidas da inocência de Igor. Ela conta que o caso teve início com o roubo de um carro cometido por quatro pessoas. Com o veículo, elas tentaram assaltar um policial militar. "Nesse momento, houve uma troca de tiros, mas o policial não reconheceu Igor. O reconhecimento partiu apenas da primeira vítima, a do carro roubado", explica.
- Leia também: Visão do Direito: O Supremo precisa de uma ministra
Durante o julgamento que levou à condenação de Igor, as provas de defesa incluíam os depoimentos de dois amigos e do irmão do jovem, que confirmaram estar com ele naquela noite. "A prova mais importante, porém, era um conjunto de imagens de câmeras de segurança de uma vendinha e de um ponto de ônibus na Avenida Zefirino Fagundes, na Zona Norte de São Paulo", afirma Dora.
As imagens mostram Igor no exato momento em que ele próprio foi vítima de um crime. O histórico da noite estava todo documentado: ele saiu de casa, foi a um aniversário, depois a uma balada com amigos e, de madrugada, saiu com o irmão e outro amigo para abastecer a moto. Nas gravações, é possível ver Igor e os rapazes em duas motos quando um carro para, alguém mostra uma arma e ele cai ferido. O vídeo mostra o carro fugindo e, logo em seguida, o jovem sendo socorrido.
Foi nesse hospital, segundo a advogada, que ocorreu o chamado "show up", um reconhecimento irregular e unipessoal. A polícia mostrou a foto de Igor ainda na maca, ensanguentado, para a vítima, dizendo algo como: "Esse rapaz tomou um tiro, pode ser um dos que te assaltaram?"
"Foi esse reconhecimento, sem qualquer procedimento formal, que sustentou a condenação", explica Dora.
Além dessas provas, a defesa apresentou um documento do hospital com o horário de entrada de Igor no pronto-socorro, comprovando que, no momento do crime em Guarulhos, ele já estava sendo atendido. "Ou seja, era impossível estar nos dois lugares ao mesmo tempo", conclui a advogada.
Outra prova contundente veio da própria investigação policial. Dora explica que, como um dos crimes envolvia um policial militar, houve perícia detalhada com laudo do local e do carro alvejado. O policial relatou ter disparado cinco vezes: três tiros atingiram o carro e dois acertaram um dos assaltantes, Rodrigo, que foi preso, confessou o crime e declarou nunca ter visto Igor antes de conhecê-lo no presídio. "Não havia, portanto, nenhum 'sexto tiro' que pudesse ter ferido Igor. Era fisicamente impossível que ele tivesse sido baleado naquele episódio", reforça Dora.
A família também apresentou fotos do local onde Igor foi baleado, na Avenida Zefirino Fagundes, mostrando santinhos de campanha eleitoral espalhados pelo chão, já que o crime ocorreu na véspera da eleição, de sábado para domingo. "Um dos tênis de Igor, perdido ali, aparece nas fotos, provando que ele estava naquele ponto. Ele sangrava muito, perdeu parte da perna e ficou gravemente ferido", relata a advogada.
Durante a audiência, as testemunhas de defesa — o irmão, um amigo e uma amiga — confirmaram todos os detalhes. Ainda assim, a juíza desconsiderou completamente os depoimentos e chegou a determinar a extração de cópias do processo para investigar eventual falso testemunho.
Reconhecimento e condenação
Apesar de todas as provas apresentadas, foi uma única foto tirada por um policial com o celular, mostrada a uma vítima em estado de choque, que havia visto o criminoso apenas uma vez, que serviu para condenar Igor por um crime que não cometeu. Para Dora Cavalcanti, a explicação para isso está na "bagagem cultural".
"Eu tenho 30 anos de formada e posso te dizer que, quando comecei na advocacia, não havia clareza sobre como a memória é frágil e como é fácil contaminá-la. Foi preciso tempo para explicar, de forma didática, ao Brasil inteiro, que, se você mostra a foto de uma pessoa à vítima, isso interfere diretamente no reconhecimento", explica.
Segundo a advogada, o desejo de ajudar a polícia, o medo de errar e o trauma vivido durante o crime tornam a lembrança altamente suscetível a influências externas. "Tudo isso induz a um reconhecimento positivo. E a gente não tinha essa consciência. Ninguém tinha. Nem a polícia, nem o Ministério Público, nem a defesa. O próprio Judiciário confiava demais nesse tipo de prova", afirma.
Dora ressalta ainda que outros fatores também contribuíram para esse erro, entre eles o racismo estrutural, que leva a desacreditar as testemunhas de defesa e a suspeitar de provas apresentadas por pessoas negras ou periféricas. "É quase como se fosse um caldo cultural, que precisou de muito tempo e reflexão para mudar", diz.
De acordo com a advogada, essa virada começou com o Habeas Corpus 598.886, uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF). Julgada em 2020, ela transformou a forma como os reconhecimentos pessoais devem ser realizados no país, especialmente em processos criminais.
No julgamento, o STF estabeleceu que o reconhecimento de pessoas só têm validade se seguir rigorosamente as regras do artigo 226 do Código de Processo Penal. Além disso, fixou o entendimento de que nenhuma condenação pode se sustentar apenas em um reconhecimento isolado, sem outras provas que o confirmem.
Mesmo com diversas provas a seu favor, Igor só foi definitivamente inocentado em 29 de junho de 2021, após uma revisão criminal que terminou empatada: cinco votos pela absolvição e cinco pela manutenção da condenação.
Antes disso, em 2019, durante o julgamento da revisão, a defesa conseguiu que ele fosse libertado. "O relator foi favorável à absolvição, o segundo desembargador acompanhou e, então, houve um pedido de vista", relembra a advogada.
Dora explica que um pedido de vista significa que o julgador leva o processo para analisar com mais calma e só o devolve para julgamento quando quiser. "O problema é que, no caso do Igor, ele já estava preso havia três anos", destaca.
Na ocasião, a defesa argumentou que Igor deveria responder em liberdade. "Sustentei que, como o relator já havia reconhecido que a vítima o identificou a partir de fotos tiradas no hospital, ele deveria aguardar o desfecho do processo em liberdade. Felizmente, o tribunal acolheu o pedido", conta.
Mesmo solto, o julgamento só foi concluído dois anos depois, em 2021. O desembargador que havia pedido vista determinou a realização de um exame de DNA no sangue encontrado dentro do carro usado no crime. Segundo a defesa, tratava-se de um caso complexo: o sangue no banco do carona era de Rodrigo, o réu confesso, ferido na troca de tiros com o policial militar.
O exame genético comparou esse sangue com o material coletado da calça de Igor, que também havia sido baleado na perna. O resultado foi negativo, confirmando que Igor não estava no veículo.
Ainda assim, quando o laudo retornou, quase dois anos depois, cinco desembargadores mantiveram a condenação com base apenas no reconhecimento fotográfico. "É muito difícil aceitar", lamenta a advogada.
- Leia também: Data Venia: Cobrança do CNJ para que o país tipifique o crime de desaparecimento forçado
Declaração de Igor Barcelos Ortega no Seminário Internacional de Ciências Criminais (2023)
"Foram três anos, os piores três anos da minha vida. Eu trabalhava, estudava e tinha o sonho de ser cantor de funk. Estava no caminho certo e, de repente, tudo desmoronou. Hoje, estou recomeçando a vida aos poucos, correndo atrás de tudo de novo. Estou feliz e sou grato a Deus e ao projeto, mas é difícil dizer que é fácil, porque não é.
A gente se sente feliz por estar na rua, por estar com quem ama, mas o medo ainda existe. Quando uma viatura passa por mim, fico tenso. Penso: 'E se me confundirem de novo? E se tentarem me incriminar por algo?'. A gente vive com esse receio. Como eu disse, a abordagem já vem com julgamento. Ninguém pergunta se a gente estuda, se trabalha, se mudou de vida. Já chegam chamando de ladrão.
E é por isso que eu faço esse pedido, tanto para quem está na linha de frente dessas situações quanto para Deus: que isso acabe. Porque esse tipo de reconhecimento irregular, como o que aconteceu comigo, não pode continuar."

Direito e Justiça
Direito e Justiça
Direito e Justiça
Direito e Justiça