Opinião

Visão do Direito: A Receita Federal quer superpoderes

"O problema não está na ideia de modernizar o sistema, mas na forma como a Receita decidiu implementar essa mudança"

 Menndel Macedo, advogado tributarista, CEO do escritório Menndel & Melo Advocacia. Atua como coordenador jurídico e tributário em entidades como FENOP, ABICOPI, ABEMI e SINICON. Participou de audiências públicas e do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária no Congresso -  (crédito:  Divulgação)
Menndel Macedo, advogado tributarista, CEO do escritório Menndel & Melo Advocacia. Atua como coordenador jurídico e tributário em entidades como FENOP, ABICOPI, ABEMI e SINICON. Participou de audiências públicas e do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária no Congresso - (crédito: Divulgação)

Por Menndel Macedo* — O Congresso Nacional discute um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que pode suspender a Instrução Normativa nº 2.275/2025 da Receita Federal. A norma obriga cartórios e registradores a enviar automaticamente todas as informações sobre compra e venda de imóveis para o sistema Sinter. Com esses dados, a Receita quer calcular o chamado "valor de referência" dos imóveis, uma estimativa de preço de mercado que serviria para apoiar a fiscalização tributária.

O problema não está na ideia de modernizar o sistema, mas na forma como a Receita decidiu implementar essa mudança. Ao centralizar dados e impor obrigações sem diálogo, a instrução amplia o alcance do órgão para além do que a lei autorizou. O resultado é um cenário de insegurança jurídica, risco de cobranças indevidas e concentração de poderes que preocupa contribuintes, investidores e o próprio mercado imobiliário.

A Lei Complementar 214/2025, que instituiu a Reforma Tributária, autorizou a criação do valor de referência e do Cadastro Imobiliário Brasileiro com o objetivo de integrar dados e dar mais transparência ao setor. Mas a lei foi clara: o valor de referência não pode ser usado como base mínima obrigatória para cobrança de impostos e qualquer obrigação imposta a terceiros, como cartórios e registradores, deve ser criada em conjunto pela Receita Federal e pelo Comitê Gestor do IBS.

Foi nesse ponto que a Receita avançou além do previsto. Ao editar sozinha a IN 2.275, impôs que os cartórios transmitam dados em tempo real e criou um sistema que, embora afirme ter caráter apenas indicativo, pode ser usado, na prática, para elevar a cobrança de tributos.

Um exemplo mostra o impacto: imagine que você compra um apartamento por R$ 500 mil, mas a Receita define que o valor de referência é R$ 650 mil. Mesmo pagando menos, o município pode cobrar ITBI sobre os R$ 650 mil. A lei não autoriza esse tipo de cálculo, mas a forma como a integração foi desenhada permite que isso aconteça, aumentando o risco de judicialização e custos adicionais para o contribuinte.

Outro ponto crítico é a privacidade. A norma prevê a centralização, em tempo real, de informações patrimoniais de milhões de brasileiros, mas não estabelece salvaguardas mínimas de proteção. Não há clareza sobre quem terá acesso aos dados, quanto tempo eles serão armazenados, quais mecanismos de segurança serão aplicados ou como será feita a auditoria do sistema. Em um cenário de recorrentes vazamentos e ataques digitais, concentrar informações tão sensíveis sem limites claros aproxima o país de um modelo de vigilância patrimonial, onde o Estado passa a monitorar de forma ampla e silenciosa a vida financeira dos cidadãos.

É nesse contexto que o PDL se torna relevante. Ele não elimina o valor de referência nem o Sinter, ambos previstos na lei, mas impõe limites à Receita e exige que uma nova regulamentação seja construída de forma conjunta com o Comitê Gestor do IBS, garantindo transparência e proteção de dados. A proposta não trava a modernização, apenas busca restabelecer o equilíbrio entre eficiência e segurança jurídica.

Modernizar o sistema imobiliário é necessário e inevitável. Integrar dados, digitalizar processos e dar mais agilidade à fiscalização são avanços importantes. Mas nenhum desses objetivos justifica uma Receita com superpoderes, capaz de criar obrigações, ampliar a base de cálculo de tributos e acessar dados patrimoniais sem autorização expressa da lei. O PDL surge justamente para colocar freios, garantindo que a digitalização avance, mas dentro de um modelo transparente, seguro e com respeito aos direitos do contribuinte.

Advogado tributarista, CEO do escritório Menndel & Melo Advocacia. Atua como coordenador jurídico e tributário em entidades como Fenop, Abicopi, Abemi e Sinicon*

 

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postado em 11/09/2025 03:30
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