Opinião

Visão do Direito: Liberdade de expressão não é salvo-conduto para o ódio

"Esse detalhe é central: críticas, ainda que duras, são legítimas; já manifestações que ultrapassam a barreira do respeito e atingem a honra, a dignidade ou incitam a violência não são apenas imorais, mas também ilegais"

Anderson Pinheiro da Costa é professor de direito do UDF -  (crédito: Divulgação   )
Anderson Pinheiro da Costa é professor de direito do UDF - (crédito: Divulgação )

Por Anderson Pinheiro da Costa* — A liberdade de expressão é um dos pilares da democracia brasileira, assegurada pela Constituição de 1988 e constantemente celebrada como conquista civilizatória. É ela que garante espaço para o debate de ideias, para a crítica aos governos, para a criação artística e para a formação de uma sociedade plural. No entanto, esse direito não é absoluto. Ele convive com outros princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a proteção da honra e a preservação da igualdade. Em uma democracia, liberdade não pode ser confundida com licença para agredir.

Nas últimas décadas, e especialmente com a popularização das redes sociais, tornou-se cada vez mais visível o quanto a linha entre opinião e ofensa tem sido cruzada. Críticas legítimas se confundem com ataques pessoais, manifestações de preconceito se escondem sob a desculpa de "liberdade de opinião", e a sensação de anonimato digital estimula a prática do ódio. Dados recentes da ONG SaferNet mostram o tamanho do desafio: entre 2023 e 2025 houve um aumento de 35% no uso de expressões, emojis e hashtags com conotação de ódio ou sexual em ambientes digitais. O número de casos monitorados saltou de 963 para mais de 1,3 mil em dois anos. Isso significa que nem mesmo os mais vulneráveis — crianças e adolescentes, por exemplo — estão protegidos de serem expostos a um ambiente de hostilidade crescente.

Nesse cenário, os influenciadores digitais exemplificam bem essa dupla face da liberdade de expressão nas redes. De um lado, há quem, sob o pretexto de opinar, ultrapasse os limites e faça comentários que rapidamente se transformam em ataques públicos, muitas vezes com grande repercussão negativa. De outro, os próprios influenciadores — ou seus familiares — se tornam alvos frequentes desse mesmo ambiente tóxico, sendo expostos a discursos de ódio tanto em comentários abertos quanto em mensagens privadas.

A própria Constituição brasileira estabelece que o anonimato é vedado. Quem fala deve se responsabilizar pelo que diz, inclusive, em ambientes digitais. Esse detalhe é central: críticas, ainda que duras, são legítimas; já manifestações que ultrapassam a barreira do respeito e atingem a honra, a dignidade ou incitam a violência não são apenas imorais, mas também ilegais. Nessas situações, a vítima tem direito não só à proteção penal, mas também à reparação civil por danos morais.

O arcabouço jurídico brasileiro avançou para lidar com esses desafios. A Lei nº 7.716/1989, a chamada Lei Antirracismo, foi originalmente criada para punir crimes motivados por preconceito de raça ou cor. Em 2023, foi atualizada para incluir a injúria racial como crime, prevendo penas de dois a cinco anos de reclusão. E, em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal estendeu a mesma proteção a ofensas ligadas à orientação sexual, equiparando-as ao racismo e reconhecendo seu caráter imprescritível. Trata-se de um recado claro: não há espaço na democracia brasileira para discursos que alimentem exclusão e discriminação.

A proteção à honra e à dignidade não é apenas um compromisso interno, mas também internacional. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, assegura em seu artigo 11 o direito de toda pessoa à proteção contra eventuais ataques à reputação. Ainda que não detalhe o que seriam os "crimes contra a honra", a Convenção impõe aos Estados-Parte o dever de adotar leis eficazes para coibir tais práticas. No Brasil, esse compromisso encontra eco no artigo 5º, inciso X, da Constituição, que eleva a honra e a dignidade a bens jurídicos de máxima relevância.

O desafio, contudo, não se resume à aplicação da lei. Ele passa também pela educação e pela construção de uma cidadania digital madura. A internet não é uma "terra sem lei" e o que se escreve, compartilha ou publica deixa rastros e consequências. É urgente estimular uma cultura de respeito, em que divergências sejam não apenas toleradas, mas valorizadas como parte essencial do jogo democrático. Liberdade de expressão, afinal, só cumpre seu papel quando contribui para ampliar a convivência e o diálogo — e não para corroer os próprios alicerces da democracia.

Professor de direito do UDF*

 

Por Opinião
postado em 11/09/2025 03:00
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