Por Bernardo Fico* — Muito se fala sobre os impactos ambientais da inteligência artificial, mas quantificá-los com precisão permanece um desafio técnico e político. Não há uma resposta única para a pergunta "qual o impacto de um modelo de IA?", justamente porque não há um único modelo, nem um único local de treinamento, tampouco um único padrão de uso. Modelos são criados, treinados e utilizados em regiões com matrizes energéticas diversas, infraestrutura variável e práticas empresariais distintas. Um sistema operando no Brasil, por exemplo, tende a apresentar uma pegada ambiental substancialmente inferior à de outro similar hospedado em países com forte dependência de combustíveis fósseis ou com escassez hídrica.
Nesse contexto, o relatório recentemente publicado pela Mistral AI, em colaboração com a agência francesa de transição ecológica (ADEME) e consultorias especializadas, marca um avanço relevante. O estudo realiza uma análise de ciclo de vida (LCA) completa de seus modelos, incorporando não apenas a energia consumida no treinamento, mas também as emissões associadas à fabricação dos servidores, o uso de água e de recursos minerais (expressos em Sb eq.).
Os dados são expressivos: o treinamento de um dos modelos da empresa resultou em 20,4 mil toneladas de CO? equivalente, 281 mil m³ de água consumidos e 660 kg Sb eq. Cada resposta de 400 tokens gerada por seu chatbot implica, em média, 1,14g de CO?e, 45 mL de água e 0,16 mg de Sb eq.
Apesar do mérito metodológico e da transparência, o estudo também escancara os limites da quantificação isolada. A cognição humana opera com limitações na representação de grandes magnitudes: nosso sistema de número aproximado (Approximate Number System, ANS) perde acurácia à medida que os valores crescem.
A isso se soma a scope insensitivity, fenômeno demonstrado em pesquisas empíricas mostram nas quais as mudanças de ordem de magnitude — como entre milhões e bilhões — muitas vezes não afetam proporcionalmente o julgamento humano. Ciente das limitações cognitivas para a apreensão de grandes escalas numéricas, esse desafio já foi ilustrado de forma lúdica por meio de analogias visuais, como a que compara um único grão de arroz a cem mil dólares, tornando mais tangível a dimensão de um bilhão de dólares.
Nesse contexto, a divulgação de métricas ambientais sem ancoragens comparativas ou referenciais pode induzir tanto à subestimação quanto à dramatização artificial dos impactos. O impacto ambiental da IA só adquire sentido prático quando comparado a outras atividades — preferencialmente cotidianas — que permitam interpretar, comparar e contextualizar os dados absolutos. A descontextualização, ao obscurecer a dimensão relacional das métricas, compromete a apreensão das informações.
Isso não elimina, contudo, a necessidade de cautela nem exime desenvolvedores e usuários de estratégias de mitigação. Do lado dos desenvolvedores, ações como (i) a realização de análise de ciclo de vida abrangente, incluindo emissões indiretas e extração de recursos naturais; (ii) a escolha proporcional da arquitetura computacional, evitando overprovisioning e adotando o menor modelo possível compatível com a tarefa — right-sizing; e (iii) a localização consciente das fases de treinamento, priorizando regiões com matriz elétrica de baixa intensidade carbônica e menor pressão sobre recursos hídricos. Nesse sentido, a Política Nacional de Data Centers se insere de forma estratégica, ao posicionar o Brasil como um potencial expoente em soluções sustentáveis para a infraestrutura de IA.
Do lado dos usuários — sejam indivíduos ou organizações —, a mitigação passa pela seleção do modelo adequado conforme a complexidade da tarefa, evitando sistemas generalistas quando sistemas mais enxutos ou ajustados para o propósito específico forem suficientes. Também pode-se agrupar consultas e prompts, reduzindo interações redundantes ou exploratórias que seja desnecessárias, contribuindo para a redução do consumo computacional.
Importa reconhecer, no entanto, que o próprio estudo referenciado admite limitações relevantes em sua metodologia, inclusive o fato de que muitos fatores de impacto precisam ser estimados com base em modelos teóricos e dados incompletos, o que impõe um grau de incerteza inevitável.
Com o avanço da IA (particularmente da IA generativa) em meio aos esforços de transição ecológica e no contexto de agravamento da pressão climática global, o debate sobre sua sustentabilidade exige mais do que métricas técnicas. Requer sua contextualização crítica para que decisões sobre pesquisa, implementação e regulação tecnológica se baseiem em informações compreensíveis, comparáveis e inseridas em um sistema compartilhado de responsabilidades..