Podcast Direito&Justiça

"Pejotização transforma o ser humano em ‘coisa’ para ser apropriado", diz Cézar Britto

O advogado esteve no podcast e debateu temas como a pejotização dos contratos de trabalho, o julgamento do Núcleo 1 da Ação Penal 2668, o modelo de eleições para a presidência nacional da OAB e a discussão sobre a anistia aos torturados durante a ditadura militar

Podcast Direito&Justiça recebe advogado e ex-presidente da OAB Cezar Britto -  (crédito: Arquivo pessoal)
Podcast Direito&Justiça recebe advogado e ex-presidente da OAB Cezar Britto - (crédito: Arquivo pessoal)

O podcast do caderno Direito&Justiça recebeu, em sua última edição, o advogado e ex-presidente da OAB, Cezar Britto. Ele foi entrevistado pelas jornalistas Ana Maria Campos e Maria Eduarda Lavocat sobre o tema da pejotização, que será pauta de audiência pública no Supremo Tribunal Federal no próximo mês. Reconhecido por sua atuação em defesa da inclusão, Britto destaca-se por trabalhar em prol daqueles que mais precisam, sempre ao lado dos mais vulneráveis. Confira algumas perguntas e respostas feitas na ocasião. 

Um  tema que está fervilhando no Supremo é a questão da pejotização. Foi adiada a audiência pública, que seria agora em setembro, mas que deve acontecer em outubro. Eu já começo perguntando: a pejotização é uma fraude nos contratos de trabalho?

Primeiro, o que é pejotização? É transformar o ser humano que trabalha em uma coisa fictícia: uma pessoa jurídica. Então, ele deixa de ser um trabalhador, regido pela legislação de proteção, que é a CLT, e passa a ser uma "coisa". Na pejotização, ele é dono de si mesmo, do seu próprio trabalho, e mais nada. Vai trabalhar para uma empresa, na atividade-fim da empresa, que vai lucrar com esse trabalho, sendo ele uma "coisa". Isso não é novidade no mundo. A coisificação sempre fez parte da história da classe trabalhadora. Você transforma o ser humano em "coisa" para ser apropriado. Você o transforma em objeto. E essa era a justificativa da escravidão.Pejotizar é nada mais do que legalizar a velha exploração da classe trabalhadora, só que com um nome mais bonito. Ninguém vai dizer: "eu vou explorar você, eu vou coisificar você, eu vou lucrar com o seu trabalho". Vão usar um nome bonito: "vou pejotizar". Quando estavam querendo revogar, lá atrás, a legislação trabalhista, também não diziam: "vou revogar, vou deixar você sem direito". Usaram um nome também muito bonito: "vou flexibilizar". Então, as pessoas usam nomes bonitos para esconder as coisas feias. E a pejotização é mais uma dessas coisas feias, propostas com um nome que parece ser charmoso.

Geralmente, a justificativa para flexibilizar essas regras é a de que isso diminuiria o desemprego, já que as empresas não teriam condições de arcar com toda a carga que um trabalhador representa. Como o senhor responde a esse argumento?"

Os dados demonstram que isso é mais uma propaganda enganosa. No primeiro governo, até a revogação da CLT, nessa nova reforma, nós estávamos em pleno emprego. Estamos de novo em pleno emprego. Então, não é o fato de você ter a legislação trabalhista que impede o emprego. Dizem "vou baixar o direitos para que possa contratar mais gente". Mas isso não acontece. Na volta do governo Lula, quando começa a retomada de alguns direitos, por exemplo, a equiparação do salário de homens e mulheres, você tem mais proteção. E nós estamos em pleno emprego. Nunca o Brasil teve tantos empregados. 

Agora, muitas vezes, o empregador diz que a contratação como PJ, favorece salários mais altos. Mas, com o tempo, isso vai ficando para trás. A gente vê trabalhadores que já ganham salários baixíssimos com esse tipo de contrato. O senhor acredita que o Supremo vai levar isso em conta e declarar que é ilegal?

Vou dar um exemplo típico de como, muitas vezes, o oprimido é convencido de que o opressor é quem está certo. O trabalhador é chamado de "empreendedor", como se fosse melhor ser "empreendedor" do que "celetista". Veja o caso dos motoristas de aplicativo: muitos dizem "ganho mais no mês". De fato, pode até ser que a renda mensal pareça maior, mas nessa conta não entram o desgaste físico e emocional de jornadas longas, o risco à saúde, a ausência de contribuição previdenciária, de fundo de garantia, de 13º salário. O que se considera é apenas o saldo no fim do mês. O salário pode até ser maior do que o de um trabalhador com carteira assinada, mas, na prática, significa trabalhar mais, em condições mais precárias, com maiores riscos e sem qualquer perspectiva de aposentadoria. O problema é que vivemos em uma geração muito imediatista, ansiosa, que quer antecipar o tempo. Às vezes, chega a soar ofensivo perguntar: "E daqui a 10 anos, como você vai estar? E daqui a 20?". Mas o fato é que 20 anos chegam e chegam cobrando seus efeitos.

E o que, na sua opinião, vai ser decidido no STF? Qual é a tendência?

Temos muito receio, porque as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal, quase por unanimidade, foram contra a classe trabalhadora, revogando conquistas históricas. O problema é que as pessoas não sabem como funciona o sistema da CLT, onde ela poderia ser melhorada. Porque, na prática, ela sempre foi favorável ao empregador. Existe uma falsa ilusão de que a CLT protege o empregado. Mas veja: se você perde uma propriedade, tem 20 anos para recuperar. Já o trabalhador, quando não recebe nenhum direito, se passar 10 anos sendo explorado, só tem direito a reclamar cinco. Perde cinco anos de exploração. O Brasil não tem estabilidade no emprego, como na Europa. E, quando é demitido, o trabalhador tem só dois anos para entrar na Justiça. Depois, não pode mais reclamar. E, a cada mês que demora para entrar, perde mais um mês lá atrás. Isso não é sistema de proteção. Os patrões sabem que é vantajoso não pagar, porque apenas um terço dos demitidos procura a Justiça. E por quê? Por medo: medo de entrar na "lista suja", medo da represália.

Mas há alguns casos em que, no seu entendimento, a pejotização pode ser usada. Por exemplo: aqueles grandes contratos. Quem defende cita muito os jornalistas de grandes emissoras, que têm contratos altíssimos, ou artistas. Nesse caso, você acha que poderia ocorrer?

A pejotização é aplicável se tiver alguns requisitos. Primeiro: autonomia de vontade. Eu posso estar trabalhando em um jornal, mas também posso trabalhar em outro. Se tiver autonomia, aí é uma relação contratual. Mas, se dizem para o jornalista: "Você está nessa emissora, mas não pode se apresentar em outra", aí não existe liberdade contratual, existe vínculo empregatício. Então, onde há liberdade contratual real, não fictícia, cabe a pejotização. Onde não há, é fraude: é relação de emprego disfarçada. 

Ontem teve um seminário, um fórum, um fórum econômico LIDE. Até esse assunto foi muito discutido, né? A senadora Tereza Cristina defendeu uma nova reforma trabalhista. Você acredita que isso vai chegar ao Congresso e que vai piorar ainda mais para os trabalhadores?

Eu analisei profundamente essa reforma que já foi aprovada, escrevi vários artigos sobre isso. E eu digo que mudaram o nome da CLT: de Consolidação das Leis do Trabalho para Consolidação das Lesões Trabalhistas. Colocaram todas as lesões possíveis e imagináveis ali. E ainda estão achando pouco. Hoje, temos uma das piores legislações do mundo, não mais de proteção. Eles fizeram várias aberrações lá dentro — infelizmente, várias com apoio do Supremo Tribunal Federal. É por isso que essa audiência sobre pejotização é importante. Sendo pública, as pessoas podem discutir e refletir sobre o papel.

Mas o país aguenta tantos direitos dos trabalhadores?

Sempre aguentou, né? E eu pergunto: o trabalhador aguenta sobreviver sem receber remuneração digna? E a família dele? Essa desigualdade não gera marginalização? Não gera abandono? Não gera escravização? A pergunta é outra. Porque quem faz essa pergunta geralmente tem carro, às vezes até navio, até iate. Vou contar um exemplo real. Uma vez fui convidado para uma palestra sobre inclusão. Quando terminei, estávamos todos à mesa, inclusive o anfitrião. Entrou o assunto das empregadas domésticas, porque havia acabado de ser aprovada a Emenda das Domésticas. E, claro, mais da metade da mesa achava um absurdo pagar direito às domésticas. No meio da discussão, o anfitrião pediu um vinho. E pediu o mais caro do cardápio. Quando o garçom trouxe, eu pedi para não abrir. Ele estranhou e eu disse: "Podemos passar sem esse vinho. É supérfluo para mim e para todos aqui. Esse vinho, de quase 3 mil reais, custa o dobro do aumento anual de uma doméstica que estamos discutindo". As pessoas não percebem que, para elas, é supérfluo.

Confira a íntegra do Podcast Direito&Justiça


postado em 04/09/2025 05:30 / atualizado em 04/09/2025 06:34
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