Entrevista

O futuro da advocacia será dos mais conscientes, afirma advogada Aline Vidanes

A especilista explica que, atualmente, existe uma nova forma de seleção natural, não mais física, mas sim mental e psicológica

Aline Vidanes advogada, autora e mentora  -  (crédito: Divulgação)
Aline Vidanes advogada, autora e mentora - (crédito: Divulgação)

A advocacia é uma carreira exigente, marcada por jornadas longas, prazos apertados e intensa pressão por resultados. Nesse cenário, cresce a preocupação com a saúde mental dos profissionais, que enfrentam altos índices de estresse, ansiedade e esgotamento emocional. Nos últimos anos, a pauta da saúde mental passou a ser cada vez mais debatida no mundo jurídico, diante do aumento do número de advogados e advogadas que relatam sintomas de ansiedade, depressão e burnout, decorrentes de uma rotina de trabalho marcada por competitividade, pressão e cobranças constantes. Em seu livro Advocacia Consciente: Saúde Mental e Bem-Estar para Advogados, a advogada Aline Vidanes destaca que, atualmente, o cuidado com o psicológico e o emocional é o novo diferencial no mercado de trabalho.

Nos grandes escritórios de advocacia, como a saúde mental dos profissionais tem sido tratada na prática? Essa questão é realmente levada a sério ou ainda é vista como secundária? 

A saúde mental já faz parte do vocabulário dos grandes escritórios, mas ainda não entrou de fato  na rotina. Vemos palestras, folhetos, comunicados sobre bem-estar e até salas de meditação,  mas quando olhamos para o dia a dia, a realidade é outra: jornadas intermináveis, celulares que  não param de tocar e a ideia de que um bom advogado é aquele que nunca diz não.  Isso não é cuidado, é contradição. É como falar de qualidade de vida enquanto se glorifica o excesso de trabalho. Advogados não são robôs. Não adianta colocar a palavra "bem-estar" nos relatórios se, ao mesmo tempo, a pausa é interpretada como fraqueza. As pesquisas confirmam o que já se sente na prática. No Brasil, apenas 14% dos advogados  procuram terapia, apesar de a advocacia estar entre as profissões mais estressantes (OAB/FGV,  2023). No exterior, estudos internacionais, como os conduzidos pela Thomson Reuters e  universidades norte-americanas, mostram que os índices de ansiedade e depressão entre  advogados estão acima da média de outras profissões. O dado mais duro é perceber que, mesmo  com tantos sinais, a cultura ainda resiste à mudança.

O adoecimento mental é frequente nesse ambiente? Na sua avaliação, quais fatores mais  contribuem para esse cenário? 

A prática jurídica reúne o ambiente perfeito para o adoecimento mental: expectativas elevadas  dos clientes, prazos implacáveis e um sistema de justiça exigente que gera frustração constante. Segundo relatos frequentes em cursos e pesquisas com os quais tenho contato, a maioria dos  advogados aponta os prazos como a principal fonte de estresse, seguidos pelo relacionamento  com os clientes e pela alta demanda de trabalho.  Esse peso não é apenas quantitativo, mas também emocional. O advogado lida diariamente com  conflitos intensos, dores familiares, perdas patrimoniais e, muitas vezes, com a expectativa de  "salvar" o cliente de situações extremas. Some-se a isso a cultura de competitividade dentro dos escritórios, e temos um terreno fértil para a ansiedade, a depressão e o burnout. A advocacia também carrega uma cultura própria que amplifica a vulnerabilidade. Existe a ideia  de que o advogado deve ser incansável, que não pode mostrar fragilidade e que deve estar  sempre disponível para responder ao cliente. Essa expectativa permanente cria uma sensação  de alerta constante que desgasta a mente e o corpo. 

Quais são hoje os principais fatores de pressão que impactam a saúde mental de  advogados? 

Não existe uma base de dados oficial que liste os principais fatores de pressão na advocacia. O  que temos é o que se revela no dia a dia da profissão e no contato com colegas e alunos. E, de  acordo com o que tenho acompanhado, três elementos aparecem com mais força: os prazos, as  expectativas dos clientes e a alta demanda de trabalho. Os prazos continuam sendo o maior vilão. Logo em seguida vêm os clientes, que esperam  respostas imediatas, como se o advogado pudesse estar sempre de prontidão. E, por fim, a  sobrecarga de tarefas que parece não ter fim, fruto de um mercado cada vez mais competitivo. Quando se vive nesse ritmo, o corpo não descansa e a mente não encontra pausa. Muitos  advogados relatam que mesmo nos raros momentos de lazer a cabeça não para, porque os  prazos e as estratégias continuam ocupando espaço. Talvez o maior fator de pressão seja  justamente esse: a crença de que só vale o profissional que está sempre disponível. Essa lógica  poderia ser repensada, porque gera uma advocacia que se desgasta rápido demais.  

Quais transtornos mentais aparecem com mais frequência entre esses profissionais —  ansiedade, depressão, burnout? 

Costuma-se falar em ansiedade, depressão e burnout quando pensamos na advocacia, mas a  verdade é que não temos dados sólidos que confirmem quais transtornos atingem mais a  categoria. Esse vazio é revelador. Se não sabemos medir, também não conseguimos cuidar com  a profundidade necessária. E, pelo que se observa, não faltam sinais de sofrimento. O que falta  é uma investigação sistemática, feita com o olhar da ciência. Por isso, aproveito esta oportunidade para fazer um convite aos neurocientistas brasileiros:  olhem para a advocacia. Aqui existe um universo de experiências, pressões e sintomas que  poderiam ampliar o conhecimento sobre como o trabalho impacta a saúde mental. É um campo  vivo, cheio de histórias e de dados que ainda não foram devidamente explorados. 

No seu livro, a senhora aponta a saúde mental como chave para o sucesso profissional.  Como o cuidado com o equilíbrio emocional pode impulsionar a carreira de quem atua na  advocacia? 

Quando entrei na faculdade de ciências biológicas, o primeiro livro que comprei foi A Origem  das Espécies, de Charles Darwin. Lembro do impacto que me causou ler sobre a teoria científica  de que as formas de vida evoluíram ao longo das gerações por meio da seleção natural, onde  sobrevivia quem tinha mais força física. Essa ideia moldou a biologia e nos fez entender que, ao  longo do tempo, os mais fortes sustentavam a continuidade da espécie. Guardo essa lembrança porque, ao observar a sociedade de hoje, percebo que estamos diante  de uma nova forma de seleção natural. Não mais a física, mas a mental. Basta olhar ao redor  para notar como a conectividade constante, a falta de sono, as redes sociais e o bombardeio  diário de informações estão desgastando nossa mente. Já existem estudos que indicam os danos  cognitivos desse estilo de vida, e é possível perceber sinais claros: dificuldade de foco, perda de  criatividade, empobrecimento do diálogo e fragilidade nas conexões humanas. Há pesquisas que  apontam, inclusive, para a redução da massa cinzenta do cérebro, acompanhada da perda de  clareza mental e da capacidade de ponderação. Nesse cenário, a saúde mental se torna o grande diferencial competitivo. A inteligência artificial  já é uma realidade, mas é a inteligência emocional que vai garantir quem permanece relevante.  Quem conseguir cultivar equilíbrio, clareza, empatia e compaixão terá mais espaço no mercado  de trabalho, inclusive, na advocacia.  Por isso, acredito que o futuro da profissão não será apenas dos mais fortes, como Darwin  descreveu no passado, mas dos mais conscientes. Aqueles que souberem cuidar da mente e  preservar sua humanidade serão os que realmente vão se destacar e construir uma carreira  duradoura.  

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Ainda existe estigma entre advogados em relação a procurar ajuda psicológica ou  psiquiátrica? Esse preconceito tem diminuído? 

Hoje se fala muito mais em saúde mental do que há alguns anos. Há mais consciência sobre a  importância da ajuda psicológica ou psiquiátrica, e a própria internet disponibiliza materiais  gratuitos que podem orientar quem está em busca de apoio. Isso é um avanço. Mas, quando observo a realidade dos advogados, vejo que ainda existe um grande obstáculo no  acesso a um tratamento contínuo. Na minha percepção, o que mais pesa são as barreiras  práticas: os custos de um acompanhamento profissional e a falta de tempo, que é um problema  recorrente relatado por colegas. A pesquisa da OAB em parceria com a FGV mostrou que apenas 14% dos advogados fazem  terapia. Esse número é muito baixo para uma profissão marcada por tanto estresse. O desafio,  portanto, é ampliar o acesso. De nada adianta normalizar a conversa sobre saúde mental se o  tratamento continuar distante da realidade da maioria. Falar é importante, mas garanr  condições para cuidar é essencial.

 


postado em 04/09/2025 05:00
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