
Por Silvia Souza* — O Brasil sabe bem onde erra. Mulheres seguem recebendo menos que homens em funções idênticas, continuam sobrecarregadas com o trabalho doméstico e ainda enfrentam a violência que as afasta de seus empregos. O cenário é tão antigo que, em vez de indignação, parece ter virado estatística repetida. Mas até quando vamos aceitar que metade da população seja tratada como mão de obra de segunda categoria?
Recentemente, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que dê prioridade ao julgamento da Lei 14.611/2023, que busca assegurar igualdade salarial entre homens e mulheres. A solicitação não é mero detalhe processual. Sem uma posição firme da Corte, abre-se espaço para insegurança jurídica e para o enfraquecimento de uma política que pode, de fato, reduzir a distância entre gêneros no mercado de trabalho. O pedido da AGU revela algo maior: se não houver pressão, o tema continuará empurrado para depois.
E quanto tempo mais vamos esperar? Os números escancaram a desigualdade. Dados do Dieese mostram que no fim de 2023 as mulheres ganhavam 22,3% a menos que os homens. Em cargos de liderança, o fosso era ainda maior: 29,5%. No âmbito global, o Fórum Econômico Mundial prevê mais de um século para a paridade salarial se nada mudar. São estatísticas que deveriam soar como alarme, mas que muitas vezes passam despercebidas no noticiário econômico.
A lei em análise traz um elemento novo e incômodo para algumas empresas: a obrigação de relatórios semestrais com dados sobre salários e critérios remuneratórios. Não é mais possível esconder desigualdades atrás de justificativas vagas. Transparência, neste caso, não é fardo, mas um passo essencial para construir confiança e corrigir distorções históricas.
Enquanto essa discussão avança, o STF também analisa outra frente decisiva: a garantia de benefício temporário para mulheres vítimas de violência doméstica que precisam se afastar do trabalho. A medida dá força à Lei Maria da Penha, reconhecendo que a vítima não pode ser duplamente punida, primeiro pelo agressor e depois pela perda da renda. É uma decisão que transforma a letra fria da lei em proteção concreta, permitindo que mulheres encontrem algum amparo em meio à violência.
As duas pautas se encontram em um mesmo eixo: a luta por dignidade. Igualdade salarial e segurança contra a violência não são favores. São direitos básicos que ainda encontram resistência em setores econômicos e políticos. Argumenta-se que a lei gera custos e aumenta a burocracia, mas a pergunta que precisa ser feita é outra: qual o preço social e econômico de continuar tratando as mulheres como cidadãs de segunda linha?
O Supremo, ao decidir sobre essas questões, não estará apenas julgando ações. Estará determinando se o país vai continuar refém de desculpas ou se terá coragem de dar um passo concreto rumo à igualdade. A lei salarial pode não acabar com todas as disparidades, mas é um marco importante para mudar práticas empresariais e sinalizar à sociedade que não há mais espaço para discriminação velada. Já a decisão sobre o benefício às vítimas de violência doméstica também reforça esse recado. Sem proteção econômica, muitas mulheres permanecem em ciclos de abuso por pura dependência. Oferecer um auxílio temporário é mais do que assistência social: é permitir que elas tenham chance real de recomeçar.
No fim, as estatísticas e os relatórios importam, mas o que está em jogo é muito maior: o reconhecimento de que mulheres merecem igualdade plena, no salário, na carreira e no direito de viver sem medo. O STF tem a oportunidade de afirmar isso de forma inequívoca. O desafio é simples e, ao mesmo tempo, profundo: queremos continuar contando quantos anos faltam para a paridade ou vamos assumir, de uma vez por todas, que já passou da hora de garantir o óbvio?
Advogada em direitos humanos, mestra em Direito pela UnB, conselheira federal pela OAB-SP e presidenta da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB*
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