Entrevista

"Brasil é o 5º país que mais mata mulheres, posição que nos envergonha", diz corregedor

Em entrevista ao Correio, procurador Ângelo Fabiano Farias da Costa elegeu o combate à violência doméstica e familiar como uma das prioridades da gestão

 Eixo Capital. Corregedor nacional do Ministério Público, Angelo Fabiano Farias da Costa -  (crédito: Divulgação/Leonardo Prado (Secom/CNMP))
Eixo Capital. Corregedor nacional do Ministério Público, Angelo Fabiano Farias da Costa - (crédito: Divulgação/Leonardo Prado (Secom/CNMP))

O corregedor nacional do Ministério Público, procurador Ângelo Fabiano Farias da Costa, elegeu o combate à violência doméstica e familiar como uma das prioridades de sua gestão à frente do controle de promotores e procuradores de Justiça em todo o país. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mudou o enfoque das correições de fiscalização geral do trabalho dos membros para uma avaliação da atuação por temas.

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Assim, o corregedor tem rodado o país, avaliando a estrutura dos Ministérios Públicos para tentar barrar esses casos de agressões que têm colocado o país numa triste estatística: o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres. Por mais que o tema tenha ganhado destaque em debates em todas as esferas, não se constata um arrefecimento. Pelo contrário, os números só pioram. 

Ângelo Fabiano tem se envolvido em soluções além das fronteiras de atuação do Ministério Público. Tem buscado redes de proteção e conversado com governadores, para que adotem políticas em defesa das mulheres e dos orfãos do feminícidio. Também defende uma conscientização das mulheres para que busquem apoio, medidas protetivas. Ele entende que, para isso, no entanto, o Estado precisa dar estrutura para que as vítimas sejam acolhidas.

Como a Corregedoria Nacional do Ministério Público, sob a sua gestão, tem atuado para ajudar a combater os casos de feminicídio no país?

As correições passaram, de uns seis anos pra cá, a ser temáticas — ou seja, se elegem temas. Antes, as correições eram feitas de forma generalizada. Quando a Corregedoria vinha ao Ministério Público do Distrito Federal, por exemplo, fazia a correição de todas as promotorias e procuradorias, fossem dos ramos do DF, do Trabalho, Federal ou Militar. No nosso mandato, resolvemos focar em direitos fundamentais. Elegemos três temas como prioritários. Um deles é a violência doméstica e familiar contra as mulheres — na verdade, a violência contra as mulheres de forma geral, mas com ênfase na doméstica e familiar, tendo em vista o elevado número de feminicídios que o país enfrenta. O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. É uma posição que nos envergonha, e os números permanecem estáveis ou quase não reduzem, ano após ano. Diante disso, decidimos verificar se é possível aperfeiçoar a atuação do Ministério Público e também recomendar ou determinar melhorias nesse trabalho — no que depende do próprio MP. E não apenas isso: queremos que o MP atue com mais efetividade no controle externo da atividade policial, no que se refere a esse tema. E que promotores e promotoras Brasil afora também façam interlocução com a chamada rede de proteção — que envolve assistência social, saúde, educação, trabalho, emprego e renda — justamente para ajudar essas mulheres a saírem da dependência econômica.

É para favorecer uma atuação do Ministério Público em várias frentes?

A atuação precisa ser mais completa e chegar também ao Poder Judiciário. Além dessa verificação mais ampla da atuação, estamos olhando se os promotores estão atuando de forma adequada — não apenas os que trabalham diretamente com a violência doméstica, mas também os da área de família. Porque há muitas situações em que, se o colega não estiver atento e capacitado, ele não vai perceber que aquela mulher é uma vítima de violência doméstica. E isso pode levar à morte. Os promotores da área de família, portanto, também estão sendo acompanhados para que desenvolvam esse olhar mais especializado. O mesmo vale para promotores da infância e juventude. Às vezes, num caso de maus-tratos contra uma criança, é possível identificar uma situação de violência contra a mulher. Além disso, estamos analisando situações rotineiras, como audiências de custódia, e buscando também contribuir para o aprimoramento das políticas públicas nas esferas federal, estadual e municipal — sobretudo nas duas últimas —, visando à proteção dessas mulheres.

Como é o trabalho em diferentes estados?

Eu já me reuni com 20 governadores. Ontem mesmo estive com o governador Ibaneis para destacar o trabalho que ele tem feito. Houve um incremento na atuação do GDF no combate ao feminicídio, digno de elogios. Mas, como sempre, fazemos algumas ponderações. É necessário melhorar a rede de atendimento. Esse trabalho está sendo feito em todo o Brasil. Com relação aos municípios, também estamos buscando melhorias na assistência social para as mulheres e tentando incluir, no âmbito municipal, por meio de recomendações ou instauração de procedimentos administrativos ou investigatórios pelos promotores e promotoras, a criação dos chamados "grupos reflexivos" — que têm foco na reeducação e conscientização do agressor. O objetivo é que eles entendam as várias formas de violência — física, patrimonial, psicológica, moral, sexual — previstas na Lei Maria da Penha, e que isso evite a escalada da violência até um eventual feminicídio. Esse tem sido o trabalho no país inteiro. 

Qual a principal falha constatada nas redes de proteção?

E o que temos identificado em todo o território nacional, inclusive agora nas correições em andamento, são muitas deficiências na parte do acolhimento das mulheres. Quando a mulher chega à delegacia, muitas vezes, por falta de estrutura — e não falo apenas de delegacias do interior, mas até de plantonistas e delegacias especializadas de atendimento à mulher (as DEAMs) —, ela é mal-recebida. O ambiente da delegacia, muitas vezes, é feito para receber o agressor, o criminoso. Não há um cuidado especial com a mulher, para que ela seja acolhida adequadamente, sem ser revitimizada. Ela pode passar quatro, cinco, seis horas para ser ouvida, ou ser ouvida várias vezes — pela polícia civil, pela assistência social, pelo atendimento psicológico e até pela polícia militar, que às vezes faz o primeiro atendimento. É uma situação em que a mulher se sente totalmente constrangida. Se ela não tiver apoio, um mínimo de acolhimento, ela não consegue nem relatar direito o que ocorreu. Há casos em que a mulher é ouvida atrás de uma divisória, mas escutando tudo o que se passa do outro lado — com outras vítimas, ou até agressores — o que não é adequado. Isso não proporciona um ambiente humanizado para a coleta das informações. E esse problema é generalizado no Brasil.

Essa é a única falha grave?

Outro ponto crítico, em nível nacional, é a falta de suporte para a vítima quando ela precisa retirar seus pertences de casa. Muitas vezes, ela não tem apoio da polícia para isso. Tivemos, por exemplo, um caso no Mato Grosso do Sul, de uma servidora do Ministério Público do Trabalho que, após ser mal-recebida na Casa da Mulher — onde ela foi denunciar —, decidiu ir buscar seus pertences na casa onde vivia com o agressor. Não havia proteção policial disponível. Ela foi morta com seis facadas. Esse tipo de tragédia acontece em várias partes do país. Há uma ausência de abrigos para as mulheres que precisam sair de casa, mesmo temporariamente. Muitas vezes, a única alternativa é voltar para casa, e isso pode ser fatal. Às vezes até há abrigos, mas sem estrutura para acolher os filhos pequenos. É uma falha grave das políticas públicas, que precisa ser enfrentada pelos governos estaduais. Outro gargalo é a questão das perícias. Se a mulher não consegue fazer a perícia no momento em que está emocionalmente abalada, no auge da coragem para denunciar, ela pode não conseguir mais. O ideal seria que a perícia fosse feita na própria delegacia, mas isso raramente acontece. Muitas vezes, não há estrutura para levá-la ao local da perícia. Em alguns casos, se mobiliza um táxi ou um carro de aplicativo, pago pelo Estado, mas isso ainda é um problema sério.

E se ela não passar pela perícia, fica a palavra dela contra a palavra do agressor?

Isso. O que tem um peso já diferenciado. Mas é claro que, quando se tem o exame de corpo de delito, aquilo facilita o trabalho do delegado na instrução dos inquéritos policiais e dos promotores, quando forem oferecer denúncia criminal contra esses agressores, para que haja, de fato, uma responsabilização.

Então, esse é um problema hoje: a instrução desses processos ainda tem muitas deficiências.

Como a Justiça e o Ministério Público têm lidado com situações em que há a palavra da suposta vítima contra a do suposto agressor?

Como é que temos atuado? Recomendando. Eu editei, como Corregedor Nacional, no dia 6 de março — próximo ao Dia Internacional da Mulher — a Recomendação nº 3, de caráter geral da Corregedoria Nacional, trazendo uma espécie de fluxo com vários pontos relativos ao atendimento e acolhimento da vítima. E também tratando essa questão da palavra da vítima: de buscá-la quando ela denuncia. Porque, em muitas situações, ela se sente totalmente desprotegida e desamparada. O promotor precisa chamá-la, fazer muitas vezes uma entrevista reservada, para explicar o papel do Ministério Público e dizer a ela o seguinte:"A senhora foi vítima, está trazendo aqui uma situação de violência, e é importante que a senhora faça o seu depoimento com o maior número de detalhes possíveis. Que isso seja registrado também por meio do exame de corpo de delito, para que haja um processamento posterior." Porque, em muitas situações, quando vai para a Justiça, a vítima, por pressões emocionais — o marido ou companheiro diz que vai mudar, que foi só uma briga, que vai se ajeitar —, ela acaba voltando atrás. E isso faz com que os processos sejam arquivados. A partir daí, a mulher pode ficar sem uma proteção significativa. Então, o que temos orientado aos promotores e promotoras é que, nesses casos em que há apenas a palavra da vítima, eles busquem, junto com a polícia, no atendimento inicial — quando não há uma perícia, por exemplo — outros mecanismos de prova. Se a mulher chegou machucada, com escoriações, com algum corte, que ela relate ter sido fruto de agressão, a autoridade deve tirar essas fotos, caso não exista um laudo pericial médico. Assim, se terá outros instrumentos de prova. Além disso, buscar testemunhas que conheçam aquela situação, para reforçar a narrativa. Porque, infelizmente, ainda há muitos juízes — e até membros do próprio Ministério Público — que, quando a mulher volta atrás do depoimento na audiência (o que é previsto na Lei Maria da Penha), pedem o arquivamento do processo.

Como enfrentar um crime em que a vítima, quase sempre, tem envolvimento emocional e dependência financeira com o seu algoz?

É muito difícil. Saiu, essa semana, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e houve uma redução significativa das mortes violentas no país. E os únicos indicadores que não diminuíram foram os feminicídios, que tiveram um aumento, em relação ao ano passado, de 1,2%. Esses dados são relativos a 2023, e foram divulgados agora em 2024. Foram 1.492 mortes. Justamente porque a maioria desses crimes ocorre dentro de casa, em ambiente doméstico, onde não há presença constante da segurança pública, de uma polícia... um contato mais próximo, uma proteção mais efetiva. Outro dado que aumentou muito foi o dos abusos sexuais, que envolvem não apenas mulheres. Foram mais de 87 mil estupros no ano passado — também com aumento — e um dado que choca é que quase 80%, mais precisamente 76,5%, foram de meninas menores de 14 anos. E 65% desses crimes ocorreram no ambiente doméstico. Ou seja, o ambiente doméstico hoje virou, de fato, um cenário de prática de crimes contra mulheres e contra crianças e adolescentes — a maioria meninas — que sofrem esses crimes, que certamente deixam traumas para toda a vida, especialmente no caso dos estupros. E o que temos visto, nas reuniões com os governadores, é a grande dificuldade em combater o feminicídio. Aqui no estado de Goiás, por exemplo, quando estive lá com o governador — isso foi em março do ano passado — ele trouxe à reunião a seguinte constatação: conseguiu reduzir todos os índices de criminalidade, menos as mortes por feminicídio.

Qual é o caminho?

Então, é algo que envolve uma série de situações muito complexas, como a assistência social, a questão da saúde... É importante haver também um protocolo entre os profissionais da saúde, do SUS, para que se possam identificar esses casos de violência doméstica e reportar às autoridades quando houver suspeitas ou indícios. Além disso, há a necessidade de consciência. Ainda hoje é preciso muito trabalho de conscientização. Há leis aprovadas recentemente pelo Congresso Nacional que instituem a obrigatoriedade de conteúdos sobre violência contra a mulher e contra crianças dentro do currículo da educação básica — na Lei de Diretrizes e Bases da Educação —, além da criação da Semana Escolar de Combate à Violência Contra a Mulher. É a partir dessa conscientização que conseguimos mudar a cultura e diminuir essas situações. Na minha visão, há um machismo estrutural presente na sociedade brasileira.

Por que esse crime tem aumentado e por que ocorre com tanta violência?

Na minha percepção, isso está muito relacionado a uma questão do machismo estrutural, sim. Claro que não dá para generalizar, mas muitas vezes a gente nem percebe o quanto está presente. Isso se manifesta de forma emocional, afetiva, e passa uma noção — ao homem que comete o crime, ao agressor, ao feminicida — de que ele tem uma espécie de posse sobre a mulher. E é possível observar que esses crimes são muito violentos, buscam justamente desfigurar as mulheres. A imensa maioria dos feminicídios é cometida com armas brancas — facas, facões —, e os golpes atingem principalmente o rosto e o corpo da mulher. É como se houvesse um objetivo de deixá-la com alguma deficiência física, alguma marca, para que ela carregue aquilo como um "castigo". Uma mensagem cruel: "Ela não vai ficar comigo, então não vai ficar com mais ninguém." É um ataque direto à autoestima da mulher. Nesse caso do extremismo, nós estamos buscando justamente trazer conscientização da sociedade como um todo. Porque nós sabemos que as mulheres estão sendo mortas muitas vezes porque não chegam ao sistema de justiça, não veem o Estado, não sabem que aquela mulher foi agredida.

Geralmente a agressão vai crescendo até chegar à morte. Como orientar as mulheres?

Pelo que temos de experiência e levantamento de casos, é muito raro que a mulher seja morta na primeira agressão. Há quase sempre uma escalada de violência que começa com xingamentos, com humilhação, com constrangimentos — aquela violência, digamos, psicológica ou moral — e depois vai escalando para uma violência física, que pode culminar na morte. Então, isso é algo que precisa ter esse papel de conscientização. E a medida protetiva de urgência é algo que, de fato, protege muito. Os dados que nós temos aqui: mais de 70% das mulheres que morreram vítimas de feminicídio não tinham medidas protetivas de urgência concedidas. Aqui no DF, os dados do ano passado: foram 23 mulheres mortas, e apenas 3 tinham medidas protetivas concedidas — algo em torno de pouco mais de 10%. Então, parte-se do princípio de que, se o Estado sabe e concede a medida protetiva, há uma chance muito maior de que a mulher não venha a ser novamente violentada ou morta. 

No Brasil, há punição adequada para feminicidas?

Há de fato esse endurecimento da persecução penal e também das punições. É importante ressaltar que, aqui no DF, a informação que temos é de que não há nenhum feminicida que não esteja preso. Isso é importante para mostrar que é um crime que precisa ter a atuação firme do Estado e a repressão. Então, são várias e várias nuances que o Estado brasileiro tem buscado adotar de endurecimento, para que haja, de fato, uma diminuição desses índices alarmantes de feminicídio.

 

 


  •  Eixo Capital. Corregedor nacional do Ministério Público, Angelo Fabiano Farias da Costa
    Eixo Capital. Corregedor nacional do Ministério Público, Angelo Fabiano Farias da Costa Foto: Divulgação/Leonardo Prado (Secom/CNMP)
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postado em 31/07/2025 05:30 / atualizado em 31/07/2025 05:40
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