Visão do Direito

Acesso à Justiça em risco

"O diagnóstico revelou que os principais vetores da sobrecarga judicial são as falhas na regulação de mercados e os comportamentos sistemáticos de violação de direitos por grandes litigantes — bancos, empresas de telefonia, planos de saúde, entre outros"

Marcello Terto e Silva, conselheiro do CNJ -  (crédito: Divulgação)
Marcello Terto e Silva, conselheiro do CNJ - (crédito: Divulgação)

Marcello Terto e Silva* — O combate à chamada "litigância predatória" tem ganhado força no Judiciário e agora no Legislativo, com um discurso que promete racionalidade, mas frequentemente resulta em exclusão. A tônica do enfrentamento da litigiosidade, sobretudo das demandas repetitivas em matéria de consumo, tem promovido distorções conceituais e práticas processuais que comprometem o direito fundamental de acesso à Justiça, atingindo de forma desproporcional os mais vulneráveis.

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O projeto de lei 3.191/2019, em tramitação no Senado, evoluiu para uma proposta de revogação da política de gratuidade das custas judiciais na primeira instância dos Juizados Especiais Cíveis, atingindo em cheio os consumidores. O argumento? Combater abusos processuais e incentivar o uso "responsável" do Judiciário. A consequência? A imposição de mais uma barreira aos hipossuficientes, que recorrem à Justiça como último recurso frente às práticas abusivas de grandes empresas.

Em audiência pública promovida pela OAB do Rio de Janeiro, alertamos para o retrocesso dessa proposta. A gratuidade nos Juizados Especiais não é um privilégio, mas um instrumento de concretização do direito fundamental de acesso à Justiça, consagrado na Constituição de 1988. Ela representa o reconhecimento institucional da vulnerabilidade do consumidor, cuja condição de parte mais fraca nas relações de consumo está expressamente reconhecida no Código de Defesa do Consumidor (CDC), especialmente nos artigos 4º, I, e 6º, VIII.

O Judiciário, por sua vez, tem adotado políticas de gestão da litigiosidade que confundem quantidade com má-fé e repetição com abuso. É o que demonstrou o grupo técnico que avaliou as origens da então chamada "litigância predatória". O diagnóstico revelou que os principais vetores da sobrecarga judicial são as falhas na regulação de mercados e os comportamentos sistemáticos de violação de direitos por grandes litigantes — bancos, empresas de telefonia, planos de saúde, entre outros. São essas condutas que multiplicam conflitos e empurram milhões de consumidores à judicialização.

Ignorar esse dado estrutural e punir o consumidor pelo excesso de demandas significa inverter a lógica da Constituição. A multiplicação de processos não é, por si só, sinônimo de abuso, mas um sintoma de que algo vai mal na entrega de serviços essenciais. É justamente nesse contexto que a Justiça deve funcionar como instrumento de reequilíbrio social, e não como mecanismo de exclusão.

No entanto, a estratégia institucional de racionalização do acervo processual tem sido contaminada por uma cultura de generalização e preconceito contra o polo ativo das ações repetitivas. O uso da imprecisa expressão "litigância predatória", como temos denunciado, termina por associar de forma leviana a advocacia de massa à fraude, e o exercício legítimo do direito de ação à má-fé. Pior: tem servido de fundamento para decisões judiciais que impõem exigências documentais excessivas, sem previsão legal, retardando ou inviabilizando o trâmite das ações.

É nesse ponto que merece destaque a postura recente do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema Repetitivo 1198 (REsp 2.021.665/MS), que não só substituiu o termo "predatória" por "abusiva", mas estabeleceu balizas de racionalidade, impedindo que o poder cautelar seja convertido em obstáculo generalizado ao acesso à Justiça, especialmente em ações fundadas em relações de consumo. A decisão sinaliza um caminho de equilíbrio, que protege o sistema sem sacrificar direitos.

O direito à tutela jurisdicional efetiva é cláusula pétrea. Não se trata apenas de abrir as portas do Judiciário, mas de garantir que elas permaneçam acessíveis, especialmente àqueles que mais precisam. O Estado tem o dever constitucional de promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. A "forma da lei" é o CDC. E o CDC parte do reconhecimento da vulnerabilidade estrutural do consumidor. Transformar esse direito em privilégio é ferir de morte o pacto civilizatório que nos sustenta.

O enfrentamento da litigiosidade exige inteligência institucional, diálogo interinstitucional e comprometimento com a democratização da Justiça. Não se pode admitir que, em nome da eficiência, se perpetue uma lógica excludente, que pune a vítima e absolve o infrator. É tempo de recuperar a centralidade do ser humano no sistema de justiça — e isso começa por reconhecer que o consumidor não é problema: é titular de direitos. E a ele, o Estado deve respostas, não obstáculos.

Conselheiro do CNJ*

 

 

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Por Opinião
postado em 31/07/2025 03:00
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