Entrevista

Especialista analisa imposições de Trump ao Brasil: "Situação fora dos padrões"

A crescente tensão entre os EUA, a família Bolsonaro e o STF, agravada por tarifas e sanções anunciadas por Trump, é analisada pelo constitucionalista João Carlos Souto, especialista em direito comparado e história política americana.

Joao Carlos Souto, professor de Direito -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
Joao Carlos Souto, professor de Direito - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

Em 9 de julho, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos importados do Brasil. A justificativa apresentada foi a suposta relação comercial desigual com o país, além da postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Desde então, a tensão entre os Estados Unidos, a família Bolsonaro e o Judiciário brasileiro vem se acirrando, especialmente após a aplicação de medidas cautelares contra Jair Bolsonaro e o anúncio de que os vistos dos ministros do STF para entrada nos EUA seriam suspensos por decisão de Trump.

Para compreender melhor o cenário e suas possíveis consequências, o Direito & Justiça entrevistou João Carlos Souto, professor de direito constitucional desde 1996 e presidente do Instituto Brasil Estados Unidos de Direito Comparado. Mestre e doutor em direito constitucional, e visiting researcher no Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law ( Heidelberg, Alemanha ), o professor dedica-se há mais de três décadas ao estudo da Constituição e da história política dos Estados Unidos, com ênfase especial na Suprema Corte norte-americana.

O senhor considera que a carta enviada pelo presidente dos Estados Unidos ao Brasil pode ser interpretada como uma tentativa de coação ou interferência indevida no processo judicial brasileiro?

Acho importante trazer algumas considerações mais aprofundadas sobre essa questão. Enxergo a situação como absolutamente fora dos padrões. Trata-se de um episódio sem precedentes na relação entre Brasil e Estados Unidos, uma relação que remonta há mais de dois séculos, desde que os EUA se tornou o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil. Desde então, temos uma relação concreta, robusta e, em geral, favorável. Para mim é algo absolutamente "fora do padrão", que não encontra precedente na relação entre democracias. Ainda assim, é evidente que se trata, mesmo que de maneira indireta, de uma interferência em assuntos internos do Brasil. E esse tipo de atitude nunca foi adotado anteriormente pelos americanos em relação ao nosso país. Não é assim que as nações devem se relacionar. Não há precedente de algo semelhante. "Vou aplicar sanções porque um correligionário, ou alguém com quem tenho afinidade política, como um ex-presidente, está sendo processado ou acusado de determinado ato, que eu considero isso injusto." Ora, nenhum país atua dessa forma. Um governo até pode se manifestar se considerar que um nacional seu, de grande nome, está sendo injustiçado no exterior e, assim, interceder. Mas veja: a candidata da extrema-direita à Presidência da França, Marine Le Pen, foi condenada, entre fevereiro e março deste ano, a perder os direitos políticos e, portanto, está impedida de concorrer às eleições de 2027. O ex-presidente Donald Trump protestou, disse que era uma injustiça. Seu vice também se manifestou. No entanto, ninguém nos Estados Unidos propôs qualquer tipo de sanção contra a França. Portanto, creio que com essas considerações consigo responder à sua pergunta de forma clara.

Na sua avaliação, há indícios de que a família Bolsonaro esteja promovendo lobby junto ao governo dos Estados Unidos com o objetivo de pressionar por uma eventual anistia?

Olha… Isso está nos jornais, né? Eu não acompanho os passos nem a trajetória dessa família. Até agora, pelo que vi na imprensa, e que tem sido amplamente divulgado, o deputado licenciado, que está nos Estados Unidos, já afirmou reiteradas vezes que está lá em busca de suspender o processo. Então, deve haver algum tipo de influência sendo exercida.

Na sua opinião, o senhor vê que Eduardo Bolsonaro está disposto a prejudicar o próprio país para pressionar por essa anistia?

Veja bem: "disposto" é uma expressão para o futuro, que exigiria de mim elementos que comprovassem essa intenção. E eu não os tenho. O que sei, e isso me parece claro, é que os atos praticados até aqui prejudicaram o país e continuam prejudicando. Isso, sim, me parece evidente. Então, os atos desse cidadão a que você se refere, evidentemente já causaram e seguem causando prejuízos ao Brasil.

As medidas restritivas impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro são, na sua visão, juridicamente fundamentadas? As justificativas apresentadas pelo ministro Alexandre de Moraes são legítimas e proporcionais?

Olha, o Supremo está decidindo essa questão e está julgando com todo o cuidado possível. O processo no Supremo tem transcorrido com o direito à defesa plenamente assegurado. O ex-presidente teve condições de arrolar testemunhas, juntar documentos e prestar depoimento. Portanto, não vejo qualquer problema no andamento do processo, especialmente diante da acusação gravíssima que pesa contra ele. A ação penal tem origem na Procuradoria-Geral da República, certo? Então, não se trata de uma decisão apenas do ministro. E eu não vejo nenhuma desproporcionalidade, até porque golpe de Estado é um crime extremamente grave. Instalar uma ditadura em um país significa causar uma reviravolta na paz social, na democracia, na liberdade de imprensa, na liberdade de viver. É algo muito sério e devastador. Que o digam Portugal de Salazar e a Espanha de Franco.

Como o senhor interpreta a decisão de Donald Trump de suspender o visto do ministro Alexandre de Moraes e de outros ministros do STF?

Até agora, não há nada oficial sobre isso. Pelo menos eu não conheço nenhum documento do Departamento de Estado americano dizendo que houve essa suspensão. Se vier a acontecer, na minha visão, será um equívoco, uma interferência inaceitável sobre um poder do Estado brasileiro, que é o Poder Judiciário, independente e autônomo. Seria um erro gigantesco, que não condiz com a relação de amizade que o Brasil mantém há mais de 200 anos com os Estados Unidos. Aliás, peço licença para mencionar: sou presidente de um instituto chamado Instituto Brasil-Estados Unidos de Direito Comparado. Fundei esse instituto justamente porque fui estudar o direito norte-americano. Sou especialista na área, estudo o sistema legal estadunidense há mais de 30 anos e sou autor de um livro, em várias edições, sobre o tema o sistema legal dos EUA. Justamente por causa dessa amizade histórica entre Brasil e Estados Unidos, e da importância que o direito norte-americano teve ao longo de mais de dois séculos para o nosso próprio desenvolvimento jurídico, é que essas atitudes recentes são tão preocupantes. O que está acontecendo atualmente contraria toda essa história positiva, importante, relevante,  tanto do ponto de vista jurídico quanto institucional. É claro que o direito dos EUA, como qualquer sistema, não é perfeito. Nenhum país é. Mas essa situação, que, volto a dizer, ainda não é oficial,  beira o inimaginável em uma relação entre dois países amigos.

Quais fatores, na sua opinião, podem explicar o apoio tão contundente de Donald Trump a Jair Bolsonaro, além de opiniões políticas similares?

Olha, o Trump foi processado nos Estados Unidos por conta dos eventos de 6 de Janeiro de 2021. Talvez ele esteja imaginando que o ex-presidente aqui no Brasil esteja sendo alvo de uma injustiça. Mas nem ele, Trump, foi vítima de injustiça lá, nem o ex-presidente está sendo aqui. Porque os fatos são amplamente documentados,  tanto os do dia 6 de janeiro quanto os do 8 de Janeiro.

A declaração dada por Eduardo Bolsonaro no último sábado, de que "se o Brasil não resolver a crise, não haverá eleição em 2026" pode ser vista como uma ameaça concreta? Qual o impacto político de uma fala como essa?

O Judiciário brasileiro não está em confronto, ele tem agido com discrição e está julgando nos termos que a Constituição autoriza . Portanto, não vejo erro por parte do Brasil. O que espero, sinceramente, é que as tratativas diplomáticas continuem sendo conduzidas nos bastidores, de forma institucional. Essas tratativas são o caminho e qualquer manifestação fora desse campo dificilmente terá efeito prático.

 


postado em 24/07/2025 05:30
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