
Por Luisa Moraes Abreu Ferreira*, Thais Pires de Camargo Rego Monteiro, Marcelo Feller** e Matheus Baptiston Herdy Menossi Pace*** — O Brasil vive uma pandemia de casos de violência doméstica. Do norte ao sul do país, multiplicam-se casos de maior e de menor gravidade, que se avolumam nas varas criminais. Lamentavelmente, os ocorridos são cotidianos, e às vezes até mesmo naturalizados, apesar das inúmeras medidas legislativas e políticas públicas voltadas ao combate à violência contra a mulher, especialmente no âmbito sistema de justiça criminal.
Algumas dessas iniciativas merecem destaque, em razão de sua forte carga simbólica no direito penal: Lei Mariana Ferrer (Lei 14.245/2021), a Lei 14.132/2021, que criminalizou o stalking, e a Lei 14.994/2024, que estabeleceu o feminicídio como tipo penal autônomo, tornando-o o crime mais grave do país. Ainda que de efetividade questionável, essas medidas têm como objetivo comunicar uma atuação firme do legislativo na proteção das mulheres vítimas de violência.
O Judiciário, por sua vez, adotou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, além de reconhecer a "especial relevância da palavra da vítima" em crimes sexuais e de violência doméstica, vem, a cada dia, reafirmado interpretações que buscam conferir maior proteção às vítimas em crimes de gênero. Até que elas se tornem rés.
Paula era casada com Emerson. Viviam juntos numa quitinete na periferia de São Paulo. Ela, cabelereira. Ele, porteiro. As brigas eram constantes, ele se tornava agressivo com facilidade, e ela atribuía isso aos vícios dele: álcool e cocaína. Discussões verbais eram rotina: gritos e xingamentos, proferidos pelos dois e ouvidos pela vizinhança.
Com o tempo, a violência física integrou a rotina. Num áudio, ele afirmou como seria fácil matá-la. Outro dia, em mais uma discussão motivada pelo ciúme, ela relata ter sido empurrada e enforcada em cima da cama, enquanto era acertada com tapas e socos. Lutando para viver, conseguiu alcançar uma faca de cozinha e o acertou uma única vez, no tórax. Ele caiu. Encerrava-se um ciclo de violência — e se iniciava outro.
O sistema inicialmente acreditou em Paula, que narrou minuciosamente o caos da sua vida doméstica. A Casa da Mulher Brasileira a acolheu e direcionou a um abrigo. Medidas protetivas foram decretadas. Até Emerson morrer.
Agora se apurava um homicídio, e a palavra da mulher já não tinha o mesmo peso: "homicida!", disse a denúncia. O acolhimento virou indiferença. A escuta atenta cedeu à frieza institucional. Toda a complexidade de sua história — o ciclo de abusos, as tentativas de ruptura, as súplicas ignoradas, os machucados visíveis e invisíveis — foi solapada por uma narrativa acusatória, cega a nuances e contradições. Ela tornou-se prisioneira de um sistema que prega proteção, mas reserva punição severa àquelas que não se encaixam no estereótipo de vítima ideal. Mais do que um caso isolado, é demonstrativo de um sistema que tem pressa para punir e pouca disposição para entender.
Paula foi sempre Paula. Mas a palavra de "Paula/vítima" não convence como a palavra de "Paula/ré". Será julgada por um tribunal do júri. Sete pessoas avaliarão não apenas a noite fatal, mas toda sua trajetória: silêncios, excessos, reações. Sua culpa será pesada junto com seu caminho. A ela caberá provar que agiu para viver. Sua palavra, que bastaria para prender Emerson, já não basta para lhe absolver.
No banco das rés também está sentada Beatriz. Mãe de Maria, que tinha apenas quatro anos quando foi brutalmente espancada por Jonas, seu padrasto, até a morte. Agredida e ameaçada diversas vezes por ele, separou-se, mas reatou pouco antes da tragédia.
Jonas foi preso e denunciado por homicídio doloso. Inicialmente, a palavra dela fez com que a Justiça concedesse medidas protetivas, reconhecendo a violência doméstica. Mas, conforme o processo avançou, ela também foi denunciada. Não pelo que fez, mas por sua incapacidade de agir. Beatriz foi acusada por homicídio doloso por omissão. Como mãe, e segundo a acusação, ela sabia do comportamento violento dele e deveria ter agido para impedir o desfecho fatal. O medo virou culpa; A hesitação virou crime.
Casos como os de Paula e Beatriz revelam o duplo enquadramento cruel operado pelo sistema de justiça: a mulher que reage é punida por reagir; a que não consegue sair da relação é punida por permanecer. A proteção, embora enunciada, é seletiva. Serve enquanto a mulher se comporta como vítima ideal — passiva, mas que não hesita em ligar para a polícia. Qualquer movimento fora desse script a transforma em ré. Sua palavra já não é tão relevante.
É urgente romper com essa lógica. O enfrentamento da violência de gênero exige escuta, contexto e sensibilidade. Exige um Judiciário disposto a entender as limitações concretas que o medo, a dependência e o trauma impõem às mulheres. Não basta aplicar leis — é preciso compreender trajetórias.
Paula e Beatriz não são exceções. São retratos de um sistema que promete proteção, mas que facilmente se volta contra quem ousa sobreviver. Que seus processos sirvam de alerta: o direito penal, se não for atravessado por perspectiva de gênero real e comprometida continuará reproduzindo a violência que diz combater.
Advogada criminalista e professora da FGV Direito SP*
Sócios do Feller Advogados**
Advogado criminalista no Feller Advogados***
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