Visão do Direito

Acionistas e administradores: responsabilidade penal e limitações

"Assim, na aferição de responsabilidades penais dentro de uma estrutura empresarial, é preciso ter claro que os administradores e acionistas não necessariamente têm pleno controle das fontes de perigo"

 Luiza A. Vasconcelos Oliver, advogada criminalista, mestre em Direito Penal pela New York University e sócia do escritório Toron Advogados -  (crédito:   Divulgação)
Luiza A. Vasconcelos Oliver, advogada criminalista, mestre em Direito Penal pela New York University e sócia do escritório Toron Advogados - (crédito: Divulgação)

Por Luiza A. Vasconcelos Oliver* — Os cada vez mais frequentes escândalos criminais envolvendo grandes empresas levam ao legítimo questionamento sobre a possibilidade de responsabilização de seus altos executivos, acionistas e membros do conselho de administração. A resposta está longe de ser simples e depende de inúmeras variáveis dos casos concretos.

Isso porque é princípio basilar do direito penal que a responsabilidade só pode ser atribuída àquele que, de alguma forma, contribuiu para o resultado danoso, seja por uma ação, seja por uma omissão e, geralmente, de forma intencional. É por isso que se diz que a responsabilidade penal é subjetiva e personalíssima.

Na maioria dos casos, essa aferição é simples. Num homicídio, em regra, é fácil atribuir responsabilidade: aquele que apertou o gatilho e aquele que encomendou a morte são inegavelmente responsáveis, e suas condutas são obviamente relevantes do ponto de vista penal. O mesmo se aplica a casos clássicos de omissão: a mãe que, tendo o dever legal de cuidado, intencionalmente deixa de alimentar o filho que vem a óbito, é criminalmente responsável. O salva-vidas que vê alguém se afogando e nada faz, igualmente.

Mas e nos casos de crimes cometidos em complexas estruturas empresariais? As cada vez mais recorrentes fraudes estruturadas, envolvendo bancos e grandes empresas; desastres ambientais, protagonizados por grandes mineradoras; ou escândalos sanitários, envolvendo indústrias farmacêuticas e alimentícias — em que medida os altos executivos, que não atuaram diretamente na execução das operações que resultaram em eventos danosos, podem ser responsabilizados criminalmente? Quando suas omissões têm relevo penal?

Certamente, essa é uma das respostas mais difíceis. O que se propõe aqui não é o enfrentamento das inúmeras problemáticas dogmáticas que envolvem a questão, tampouco a análise de casos concretos. A reflexão é mais singela e trata da delimitação do dever de cuidado dos administradores e acionistas à luz do princípio da confiança.

Em uma empresa estruturada, o administrador pode desconhecer fatos fora de sua área de atribuição, assim como pode confiar que os profissionais designados para funções específicas desempenharão suas atividades de forma adequada, sem a necessidade de supervisionar cada decisão técnica ou operacional tomada por eles. Também pode confiar que as informações recebidas dos membros da empresa são corretas e refletem com precisão a realidade.

A lógica desse princípio reside no reconhecimento de que a divisão de funções dentro de uma empresa, além de necessária do ponto de vista humano, é essencial para o seu funcionamento. Empresas de grande porte não operam com um único tomador de decisões responsável por todas as atividades técnicas ou operacionais, mas sim, por meio de um sistema de delegação e especialização funcional. Essa lógica é especialmente relevante em setores que envolvem riscos específicos e demandam conhecimentos técnicos aprofundados — como engenharia, mineração e saúde —, nos quais a delegação é um mecanismo indispensável de gestão e controle.

A não delegação, longe de indicar maior diligência, é uma forma disfuncional e ineficaz de administrar riscos, na medida em que, além de concentrar em um só indivíduo uma enorme quantidade de decisões, impõe a tomada de decisões técnicas por pessoas sem a especialização necessária.

Assim, na aferição de responsabilidades penais dentro de uma estrutura empresarial, é preciso ter claro que os administradores e acionistas não necessariamente têm pleno controle das fontes de perigo. É perfeitamente possível — natural e recomendável — que deleguem funções e confiem no correto desenvolvimento das atividades delegadas, bem como na idoneidade das informações que recebem.

Em caso paradigmático julgado pelo STF, foi determinado o trancamento da ação penal movida contra o presidente de um parque de diversões, acusado de homicídio culposo no trágico acidente que levou à morte de uma jovem em uma das atrações, que operava de forma indevida. O fundamento central da decisão foi a aplicação do princípio da confiança, que, conforme destacado pelo ministro, impõe limites ao dever de cuidado da alta administração da empresa e afasta a responsabilidade penal de agentes que não tinham obrigação legal ou contratual direta sobre o evento danoso. No caso específico, o Tribunal reconheceu que cabia aos empregados encarregados da manutenção e operação do equipamento garantir sua segurança, e não ao presidente da empresa, cuja função não envolvia supervisão técnica direta. Ele confiava nas capacidades do subordinado e atuou de acordo com essa legítima confiança.

Esse raciocínio se aplica integralmente à atribuição de responsabilidade penal em estruturas empresariais complexas. A responsabilização, por omissão, de altos executivos, administradores e acionistas — em razão de condutas praticadas por subordinados ou funcionários — depende da identificação, no caso concreto, de elementos que demonstrem a violação inequívoca do dever de cuidado por parte deles. Isso pode ocorrer, por exemplo, se houver prova de que o administrador tinha conhecimento de falhas graves nos controles internos e, ainda assim, nada fez para corrigir a situação, ou se deliberadamente ignorou alertas técnicos sobre riscos iminentes. Sem essa conexão concreta entre a conduta do gestor e o resultado ilícito, a responsabilização penal torna-se uma forma disfarçada de responsabilidade objetiva, incompatível com os princípios fundamentais do direito penal.

Advogada criminalista, mestre em Direito Penal pela New York University e sócia do escritório Toron Advogados*

 

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Por Opinião
postado em 24/04/2025 04:30
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