Evolução

Frutas maduras e tubérculos mudaram o formato dos dentes molares dos humanos

Os primeiros humanos se adaptaram à comodidade de consumir frutos caídos, influenciando na mudança dos dentes molares: que ficaram menores e mais longos para garantir a mastigação dos alimentos mais duros e resistentes

Fósseis de três espécies diferentes dos hominídeos apresentam características comuns, indicando as opções da nova dieta    -  (crédito: Reprodução)
Fósseis de três espécies diferentes dos hominídeos apresentam características comuns, indicando as opções da nova dieta - (crédito: Reprodução)

Pesquisadores descobriram que mudanças na alimentação dos hominídeos (nossos ancestrais), que optaram por frutos caídos no chão e tubérculos, levaram à transformação no formato dos dentes molares. Eles também identificaram que o hábito dos macacos de apanhar plantas inspirou o ser humano, criando um costume que deu vida à ideia de banquete. E, para completar: o gosto dos macaquinhos de comerem frutas "passadas", portanto fermentadas, foi copiada pelo homem, que se afeiçoou ao sabor e, daí, surgiu o apreço do álcool.

Artigos sobre os três estudos foram publicados na revista científica BioScience. Os cientistas da Faculdade de Dartmouth identificaram as mudanças físicas e o gosto pelo álcool, enquanto os pesquisadores do Instituto Americano de Ciências Biológicas verificaram que a colheita dos frutos caídos pode ter levado a humanidade a desenvolver o costume pelo banquete. Os cientistas observaram que os dentes molares ficaram menores e mais longos por causa do consumo de  plantas, semelhantes a gramíneas, conhecidas como graminoides, amêndoas. Segundo os estudos, o consumo desse tipo de alimento começou há cerca de 3,8 milhões de anos com o parente humano distante Australopithecus afarensis.

De acordo com os pesquisadores, há aproximadamente 2,3 milhões de anos, o Homo rudolfensis teve acesso regular a órgãos vegetais subterrâneos ricos em carboidratos, como tubérculos, bulbos e cormos, alterando parte da arcada dentária. Até cerca de 2 milhões de anos atrás, espécies, como Homo ergaster tinham dentes mais adequados para comer vegetais cozidos.

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Adaptação

Os cientistas ratificam o conceito de que os primeiros humanos demonstravam uma capacidade elevada de adaptação a novos ambientes, apesar das limitações físicas. "Os hominídeos eram bastante flexíveis em termos de comportamento, e essa era a sua vantagem", disse Luke Fannin, pesquisador de pós-doutorado em Dartmouth e principal autor do estudo. "Falamos da mudança comportamental e morfológica como algo que evolui em sincronia."

Nathaniel Dominy, professor da Charles Hansen de Antropologia em Dartmouth e autor senior do estudo, ressaltou que "as assinaturas químicas" identificadas nos fósseis levaram às descobertas. "Mas essas assinaturas químicas são um resquício inconfundível do consumo de capim, independentemente da morfologia", acrescentou. "Mostram a necessidade de dentes molares mais longos para enfrentar o desafio físico de mastigar e digerir tecidos vegetais resistentes."

A equipe analisou os dentes de várias espécies de hominídeos, começando pelo Australopithecus afarensis, para rastrear a evolução do consumo de diferentes partes dos graminoides ao longo de milênios. Para comparação, foram verificados os os dentes fossilizados de duas espécies de primatas extintas que viveram aproximadamente na mesma época — macacos terrestres gigantes semelhantes a babuínos, chamados terópitas, e pequenos macacos comedores de folhas, chamados colobinos.

As três espécies abandonaram frutas, flores e insetos e migraram para gramíneas e juncos entre 3,4 milhões e 4,8 milhões de anos atrás, embora houvesse ausência de dentes e sistemas digestivos ideais para comer essas plantas mais resistentes. De acordo com o estudo, os três mantinham dietas vegetais semelhantes até 2,3 milhões de anos atrás, quando os isótopos de carbono e oxigênio nos dentes dos hominídeos mudaram abruptamente.

Essa queda nas proporções de ambos os isótopos sugere que o ancestral humano da época,o Homo rudolfensis, reduziu o consumo de gramíneas e consumiu mais água pobre em oxigênio. Segundo as análises, há duas hipóteses: os hominídeos bebiam muito mais água do que outros primatas e animais da savana, ou adotaram repentinamente um estilo de vida semelhante ao dos hipopótamos, ficando submersos na água o dia todo e comendo à noite.

Há, ainda, uma outra explicação: os primeiros humanos tiveram acesso a tubérculos, bulbos e cormos, adaptando o paladar a esse cardápio e, ainda costumavam armazenar água como meio de subsistência. Os pesquisadores desconfiam de que os hominídeos "escondiam" alimentos debaixo da terra para evitar ataques dos animais, uma vez que esses esconderijos subterrâneos eram abundantes, menos arriscados do que a caça e forneciam mais nutrientes para o cérebro em desenvolvimento dos primeiros humanos.

Banquete e álcool, hábitos ancestrais

Os cientistas liderados por Nathaniel Dominy (Dartmouth College) e Catherine Hobaiter (University of St Andrews) constataram que, a exemplo dos macacos, os primeiros humanos apreciavam se reunir em torno de um vasto cardápio, geralmente baseado em frutos caídos das árvores, tubérculos e amêndoas. Para ele, a antecipação dos banquetes atuais. Essas frutas, segundo os pesquisadores, passavam por fermentação semelhante ao etanol, dando um toque especial ao momento.

"A ingestão de álcool pelo último ancestral comum de gorilas, chimpanzés e humanos, há cerca de 10 milhões de anos, pode explicar por que os humanos são tão incrivelmente bons em digerir álcool", disse Dominy. "Evoluímos para metabolizar o álcool muito antes de descobrirmos como produzi-lo, e produzi-lo foi um dos principais impulsionadores da Revolução Neolítica, que nos transformou de caçadores-coletores em agricultores e mudou o mundo."

Os autores escreveram que a sociabilidade promovida pelo hábito de colheita de frutos caídos e o "consumo conjunto de álcool" e a associação aos banquetes e rituais sagrados são "eventos que produzem e reforçam a identidade e a coesão da comunidade". No artigo publicado na BioScience, os cientistas questionam: "É possível rastrear as raízes desses hábitos alimentares humanos até o scrumping (expressão utilizada para o costume de catar fruídos caídos) social de frutas fermentadas nas florestas tropicais da África?".

Inicialmente, os autores estão convencidos de que o costume atual de os humanos se reunirem em torno de comida e bebida é um hábito muito mais antigo do que se imagina. Eles acreditam que ao comer frutas fermentadas desencadearia alteração em um aminoácido no último ancestral comum de humanos e macacos africanos, que teria aumentado a capacidade de metabolizar álcool em 40 vezes.

A esse costume de coleta de frutos, os cientistas batizaram com a palavra scrumping. A palavra é a forma inglesa da alemã medieval schrimpen, substantivo que significa "murcho" ou "encolhido", usado para descrever frutas maduras ou fermentadas. Na Inglaterra atual, scrumpy se refere a uma cidra de maçã turva com um teor alcoólico que varia de 6 a 9%.

É possível que os humanos tenham se inspirado nos macacos, copiando o hábito e aprendendo a saborear frutos fermentados, segundo Catherine Hobaiter, professora de psicologia e neurociência em St Andrews e coautora correspondente do estudo. "Uma característica fundamental da nossa relação com o álcool é a tendência de bebermos juntos, seja uma cerveja com amigos ou um grande banquete social", diz Hobaiter. "O próximo passo é investigar como a alimentação compartilhada com frutas fermentadas também pode influenciar as relações sociais em outros primatas."

Três perguntas para Ataydes Magalhães, professor de odontologia na Universidade Católica de Brasília (UCB)

Essa pesquisa faz sentido no que se refere às mudanças observadas nas arcadas humanas?

A mudança para uma dieta rica em carboidratos subterrâneos (tubérculos, bulbos) e depois alimentos cozidos (como sugerido pelo estudo) é coerente com a redução da necessidade de dentes grandes e fortes, já que os alimentos passaram a exigir menos força mastigatória. Como professor da disciplina de integração morfofuncional do sistema estomatognático, vejo que o estudo está alinhado com o que conhecemos sobre a evolução morfofuncional. O uso de isótopos estáveis para inferir hábitos alimentares é um método utilizado, já validado em paleoantropologia e odontologia forense. A evidência apresentada mostra que o comportamento alimentar precedeu as mudanças anatômicas, o que representa um fenômeno conhecido como impulso comportamental, em que a cultura ou o comportamento cria pressões seletivas antes da adaptação física.

O que se observa de mudanças ao longo das transformações no corpo humano?

Do ponto de vista odontológico, observamos ao longo da evolução humana: redução do prognatismo e diminuição do tamanho da arcada; encurtamento da face média; diminuição do tamanho geral dos dentes, especialmente molares, acompanhada de mudanças no formato; desenvolvimento da oclusão moderna, com tendência à má oclusão em populações com dietas moles e processadas.

Seria demais pensar que, no futuro, a partir dos hábitos humanos atuais, mais mudanças virão?

Isso é esperado. A evolução não parou. O que mudou foi o ritmo e o tipo de pressão seletiva. Hoje, a evolução humana não se dá apenas por adaptação ao ambiente físico, mas também ao ambiente cultural, tecnológico e alimentar. A dieta moderna mole e industrializada, por exemplo, leva à menor necessidade de mastigação intensa que lava subutilização da musculatura mastigatória; à contribuição para o estreitamento das arcadas, má oclusões e apinhamentos dentários; à redução funcional das estruturas orofaciais (músculos da mastigação, desenvolvimento ósseo). Há, ainda, alterações na respiração bucal e hábitos de vida, além da necessidade de intervenções tecnológicas, como as que ocorrem via ortodontia, harmonização orofacial, implantodontia e estética dentária. 

Sobrevivência 

Há tendências evolutivas em curso. Isso se manifesta, por exemplo, na forma como os dentes do siso, nossos últimos molares, estão cada vez mais ausentes ou desnecessários. A evolução depende do ambiente, dos recursos disponíveis e das pressões seletivas que ainda virão. O ambiente e as condições de vida apenas determinam quais delas se mostram vantajosas ou desvantajosas em um dado contexto. Essa vantagem nutricional e reprodutiva aumenta as chances de sobrevivência e de reprodução desses indivíduos, fazendo com que essa característica, dentes mais adaptados, se torne mais comum na população ao longo do tempo. Assim, características menos vantajosas tendem a desaparecer, enquanto as mais vantajosas vão se fixando, contribuindo para a evolução da espécie. Ou seja, é um processo gradual, em que a adaptação vai sendo moldada pela sobrevivência e pela reprodução dos mais aptos àquela nova realidade alimentar.

Fabrício Escarlate, professor de ciências biológicas do CEUB

 

 

postado em 01/08/2025 06:00
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