MEMÓRIA

Artigo: Juscelino Kubitschek — a arquitetura, a arte e o poder

O diálogo e a integração entre arquitetura, urbanismo, monumentalidade e obras de arte, historicamente, não são uma experiência comum nas edificações urbanas de muitas civilizações. Entretanto, quando a construção de Brasília tem início, em março de 1957, essa compreensão e esse conceito já estavam estabelecidos

Marianne Peretti, Athos Bulcão, Alfredo  Ceschiatti, Oscar Niemeyer, José Sarney e Burle Marx -  (crédito: Arquivo)
Marianne Peretti, Athos Bulcão, Alfredo Ceschiatti, Oscar Niemeyer, José Sarney e Burle Marx - (crédito: Arquivo)

Por Jorge Henrique Cartaxo* e Lenora Barbo** — Especial para o Correio — Num final de tarde de 1958, no Catetinho, os amigos presentes na ocasião ofereceram um uísque a JK. Celebravam mais uma vitória daqueles dias memoráveis. Com um copo na mão, o jornalista Murilo de Melo Filho procurava gelo na cozinha do singelo “barracão presidencial”, erguido pelo traço de Niemeyer na imensidão do cerrado. O brinde, contrariando a expectativa do presidente, deveria ser puro e sem gelo quando, de repente, o céu se fechou, fazendo cair sobre o Planalto Central uma densa chuva de granizo. Até a natureza atendia às pequenas e grandes expectativas de JK!

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Era uma época harmoniosa no País, prenhe de realizações e encantamentos. Fora, talvez, o canto do cisne da nossa “Belle Époque” tropical. João Gilberto gravou, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, “Chega de Saudade” — certamente o toque de Midas da Bossa Nova. O Cinema Novo, que iria se expressar no final de 1959/1960, já ocupava o debate no mundo cultural depois do filme “Rio 40 Graus”, sob a direção de Nelson Pereira dos Santos, em 1955. O DKW-Vemag, com 50% de peças fabricadas no Brasil, passou a ocupar as ruas do País. O Teatro Oficina, que nasceu como um grupo amador ligado ao Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, dava seus primeiros passos sob a liderança de José Celso Martinez. Eleita Miss Brasil em 1958, Adalgisa Colombo, com sua beleza e estilo, antecipava a estética da mulher brasileira que prevaleceria na década de 60. A democracia, quase esfuziante, acolheu, no programa “Noite de Gala”, de Flávio Cavalcanti, na TV Rio, para uma entrevista, o mitológico Luiz Carlos Prestes. O Brasil vence a Copa do Mundo no Estádio de Rasunda, em Solna, na Suécia. Pelé, Garrincha e Nilton Santos surgem para o Brasil e o mundo. A construção de Brasília, em ritmo acelerado, mobilizava o País e chamava a atenção da inteligência ocidental. Sua inauguração já estava logo ali, sob o olhar sereno e a firmeza silente de Oscar Niemeyer. O modernismo anunciava — e anunciaria — o seu apogeu no Brasil!

O modernismo brasileiro pode ser circunscrito em cinco grandes eventos próximos, de certa forma integrados, mas distintos entre si: a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, com destaque para o pioneirismo de Anita Malfatti e sua Exposição de Pintura Moderna, em 1917; o Salão Revolucionário de 1931, organizado por Lucio Costa na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro; o projeto do Ministério da Educação, em 1937, com a participação dos arquitetos e urbanistas Le Corbusier, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Affonso Reidy, Jorge Moreira e Carlos Leão, e dos artistas Burle Marx e Cândido Portinari; a construção do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em 1943, em Belo Horizonte, projeto de Oscar Niemeyer, com a colaboração dos artistas Burle Marx, Cândido Portinari, Athos Bulcão e Alfredo Ceschiatti; e a Exposição de Arte Moderna, também em Belo Horizonte, em 1944. A Pampulha e a exposição constroem a relação consistente de JK com o modernismo no Brasil e com os movimentos de vanguarda que se fariam presentes no país até a inauguração de Brasília e, de certo modo, ao longo das duas décadas seguintes.

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As repercussões do projeto modernista do Ministério da Educação, então comandado pelo também mineiro Gustavo Capanema — que tinha em sua equipe, igualmente mineiros, Carlos Drummond de Andrade e Rodrigo de Mello Franco — chamariam a atenção do jovem prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek. Nomeado em 1940 por indicação do interventor Benedito Valadares, JK foi apresentado a Lucio Costa e a Oscar Niemeyer pelo conterrâneo e amigo Rodrigo de Mello Franco, então dirigente do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional. Assim surgiu a ideia do Conjunto Arquitetônico da Pampulha: uma igreja, um cassino, uma casa de baile, um clube e um hotel — todo o conjunto em torno de um lago artificial.

“Nesses raros momentos felizes, densos de plenitude, a obra de arte adquire um rumo preciso e unânime: arquitetura, escultura, pintura formam um só corpo coeso, um organismo vivo de impossível desagregação”, conceituou Lucio Costa em seu famoso texto “Razões da Nova Arquitetura”, de 1934, ao romper esteticamente com o ecletismo, o neoclássico e o neocolonial em favor do modernismo de Le Corbusier. Essa tese, acolhida no projeto do Ministério da Educação em 1937, encontraria seu primeiro grande momento no Brasil no projeto da Pampulha. E estavam todos lá: Joaquim Cardozo, Athos Bulcão, Cândido Portinari, Oscar Niemeyer, Alfredo Ceschiatti, Augusto Zamoyski e Paulo Werneck. Buscaram a realização da “obra de arte total”. As formas arrojadas do que passou a ser conhecido como modernismo brasileiro encontraram sua primeira grande visibilidade e expressão no conjunto da Pampulha — ainda que ele nunca tenha funcionado plenamente nem se estabelecido exatamente como ponto turístico consistente da cidade. A impactante e extraordinária Igreja de São Francisco de Assis, de Niemeyer — com seu painel de azulejos, a Via-Sacra, o mural do altar principal e os painéis de cerâmica do púlpito, obras de Portinari — só foi consagrada em 1959.

Quando JK decide fazer a Exposição de Arte Moderna, em 1944, certamente tinha dois objetivos bem perceptíveis: intensificar a divulgação da grande obra arquitetônica que era o Conjunto da Pampulha e apresentar, ao reunir a inteligência do país em Belo Horizonte, sua contemporaneidade e identificação com o modernismo brasileiro. O que valia dizer: o desenvolvimentismo, o olhar social, a nova estética e o amanhã. JK, naquele momento, inseria Minas — e a si próprio — nas reflexões que iriam surgir no pós-guerra e em seus desafios. Debate, até então, de certo modo, no Brasil, circunscrito às elites do Rio de Janeiro e de São Paulo. E, nesses momentos, nada mais rico do que a arte, suas sensibilidades e convergências.

Numa demonstração de grande visibilidade política, JK, em maio de 1944, recebe em Belo Horizonte, vindos do Rio: Jorge Amado; Valdemar Cavalcanti (Folha Carioca); Samuel Wainer e Geraldo Freitas (revista O Cruzeiro); Millôr Fernandes (escritor); Hans Etz; Milton Dacosta; Djanira; Carlos Scliar e Poty (expositores). Na delegação paulista: Sérgio Milliet, então diretor da Biblioteca Pública Municipal de São Paulo; Oswald de Andrade; Luiz Martins; Arnaldo Pedroso d’Horta (então redator da Agência Interamericana); Paulo Emílio Salles Gomes (então crítico e diretor da Clima); Alfredo Mesquita; Caio Prado Júnior; Décio de Almeida Prado (teatrólogo); e os artistas Clóvis Graciano, Oswald de Andrade Filho, Mário Zanini, Nelson Nóbrega, Paulo Rossi Osir, Alfredo Volpi, Rebolo Gonsales, Anita Malfatti e Hilde Weber.

As palestras e conferências, todas abertas ao público, eram seguidas, não raro, de acalorados debates. Santa Rosa falou sobre a arte moderna; José Lins do Rego, sobre o senso de humor dos nordestinos; Sérgio Milliet, sobre os fundamentos da arte moderna; Luiz Martins, sobre a evolução da arte brasileira; Oswald de Andrade, sobre o desenvolvimento do modernismo no Brasil; e Di Cavalcanti discorreu sobre os “mitos do modernismo”. O encontro de Belo Horizonte mobilizou a cidade, teve grande repercussão no Rio e em São Paulo e ofereceu aos mineiros 134 obras de 46 artistas do modernismo brasileiro.

O diálogo e a integração entre arquitetura, urbanismo, monumentalidade e obras de arte, historicamente, não são uma experiência comum nas edificações urbanas de muitas civilizações. Entretanto, quando a construção de Brasília tem início, uma vez aprovada a proposta de Lucio Costa em março de 1957, essa compreensão e esse conceito já estavam estabelecidos. No caso de Brasília, de modo particular, a integração da arte, da arquitetura e do urbanismo constitui referência fundamental para a percepção e a construção da imagem da cidade.

Athos Bulcão, por exemplo, tem mais de 260 obras presentes em edifícios, residências, instituições e equipamentos urbanos. São dele o mural externo do Teatro Nacional Cláudio Santoro e os azulejos da Igreja Nossa Senhora de Fátima (a famosa igrejinha da 308 Sul). No Congresso, além do painel Ventania, ele tem mais de 15 obras, além de trabalhos no Supremo Tribunal Federal, Palácio da Alvorada, Palácio do Itamaraty e Brasília Palace. Athos chegou a Brasília em 1958, a convite de Oscar Niemeyer, depois de ter trabalhado apoiando Portinari na Pampulha.

Burle Marx, o maior paisagista brasileiro do século XX, trabalhou com Oscar Niemeyer e Lucio Costa na construção do prédio do Ministério da Educação, em 1937, e na Pampulha, em 1940/43. Em Brasília, dentre outras obras, fez os jardins do Itamaraty, da Praça dos Cristais, do Palácio do Jaburu, da 308 Sul, do Teatro Nacional, do Tribunal de Contas da União, do Ministério da Justiça e o jardim Burle Marx, na Torre de TV. Alfredo Ceschiatti é o autor de A Justiça, que fica em frente ao Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes; dos Anjos e dos Evangelistas, na Catedral; das esculturas Duas Amigas (Palácio do Itamaraty) e As Banhistas (Palácio da Alvorada); do Anjo no Salão Verde da Câmara dos Deputados; da Deusa Atena na Biblioteca Central da UnB; e de Leda e o Cisne no Palácio do Jaburu. Bruno Giorgi, um dos mais importantes escultores brasileiros, tem três obras clássicas na cidade: Os Guerreiros (popularmente conhecidos como Os Candangos), na Praça dos Três Poderes — um dos símbolos de Brasília —; O Meteoro, que fica no espelho d’água do Palácio do Itamaraty, representando os laços diplomáticos entre as nações; e o Monumento à Cultura, que fica na Praça Edson Luiz, na UnB.

Injustamente pouco lembrada, a única mulher da equipe de Oscar Niemeyer, Marianne Peretti, é autora de obras fundamentais e magníficas na cidade. Os vitrais da Catedral de Brasília; os painéis e vitrais Araguaia, na Câmara dos Deputados, e Alumbramento, no Senado; no Tribunal de Justiça, a Mão de Deus; no Memorial Juscelino Kubitschek, os vitrais sobre o túmulo; no Panteão da Pátria, o vitral e a escultura da fachada; no Palácio do Jaburu, os vitrais e o painel da capela. Leveza, grandeza e transparência — é o que afirmam os grandes críticos sobre o trabalho de Marianne Peretti.

*Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e Diretor de Relações Institucionais do IHGDF

**Lenora Barbo é arquiteta e Diretora do Centro de Documentação do IHGDF

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postado em 09/11/2025 05:00
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