Patrimônio

Casa modernista projetada por Lelé está abandonada no Lago Sul

Residência histórica da cidade é assinada por um dos principais nomes da arquitetura brasileira, João Filgueiras Lima, o Lelé

Residência César Prates atualmente -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Residência César Prates atualmente - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Paredes descascadas e pichadas, alambrado caído, buracos no portão, telhas soltas, calhas prestes a desabar, piscina furada, um matagal que cresce onde antes havia um jardim agora é ambiente propício para proliferação de mosquitos. A cena chama a atenção de quem passa pela QL 8 do Lago Sul, onde está localizada a Residência César Prates, uma das obras assinadas por um dos principais nomes da arquitetura brasileira, João Filgueiras Lima, o Lelé. Pertencente à Embaixada da África do Sul, a casa está abandonada há mais de uma década. Além do descuido com um patrimônio de valor histórico e urbanístico, a situação preocupa os moradores da região, que temem pela segurança, saúde e desvalorização da quadra.

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Projetada em 1961, essa foi a primeira residência construída por Lelé na capital, a pedido de César Prates, amigo e assessor do ex-presidente JK. Conhecido pelas obras da rede de hospitais Sarah, o arquiteto aplicou na residência, uma espécie de assinatura de seus projetos: os chamados “sheds”, que proporcionam iluminação e ventilação naturais. Além da integração entre os espaços internos e externos e o emprego de materiais aparentes, como pedra bruta, madeira e concreto. 

No térreo, estão as áreas sociais e de serviço. Já no pavimento superior, ficam os quartos. O jardim interno que, antes garantia luminosidade e ventilação cruzada, hoje permanece tomado pelo mato. Além disso, os painéis treliçados de madeira, presente na maior parte da casa, eram características da arquitetura moderna brasileira que filtravam a luz e asseguravam privacidade.

Para o arquiteto e urbanista Adalberto Vilela, professor da Universidade de Brasília (UnB) e autor de um estudo de mestrado sobre o imóvel, a residência explica o início da trajetória de Lelé. “O imóvel mostra o momento em que ele estava muito vinculado  a uma vertente da arquitetura brasileira que valorizava materiais naturais e uma espacialidade leve, fluida. O uso de madeira, pedra e muxarabi, aquelas venezianas de madeira, tudo está diretamente ligado a essa tradição”, completa.

O arquiteto lembra que, quando visitou o imóvel em 2011, já encontrou sinais do abandono que hoje se agravaram. “A casa estava vazia, com caixas empilhadas no térreo, como se fosse um depósito. Mas ainda dava para ver a inteligência do projeto. A escada, por exemplo, é uma obra-prima de design. Ela é toda suspensa, sem tocar o chão, apoiada por pinos metálicos. É um exemplo de economia de material e leveza estrutural”, lembra.

  • Residência César Prates em 2011, ainda preservada
    Residência César Prates em 2011, ainda preservada Joana França
  • Residência César Prates em 2011, ainda preservada
    Residência César Prates em 2011, ainda preservada Joana França
  • No interior da casa, iluminação e ventilação naturais
    No interior da casa, iluminação e ventilação naturais Joana França
  • Residência César Prates em 2011, ainda preservada
    Residência César Prates em 2011, ainda preservada Joana França

Outro destaque era o sistema criado por Lelé para umidificar o ambiente interno, algo que considerava essencial em suas criações pelo clima seco de Brasília. “Uma das paredes da sala era revestida por pedras naturais, e nelas havia um sistema de gotejamento de água. Essa água escorria lentamente pelas rochas e era drenada por uma calha no rodapé, umidificando o ar do ambiente. Isso mostra como Lelé se preocupava com o conforto e bem-estar climático do morador, muito antes de se falar em sustentabilidade”.

Filha de Lelé, Adriana Filgueiras Lima é arquiteta como o pai, e fica triste ao ver a deterioração da casa que ele projetou. Ela descreve a casa com carinho, lembrando dos detalhes como o espelho d'água e os jardins que apreciava na infância. "Lamento o estado atual. É um desrespeito ao trabalho do meu pai. Aquela casa era linda. Eu adorava ir com o meu pai visitar".

Residência César Prates em 2011, ainda preservada
Foto de 2011 mostra a fachada do imóvel que já apresentava sinais de falta de cuidado (foto: Joana França)

Adriana teme que a Embaixada deixe a casa se deteriorar para demoli-la. Ela acredita que a casa merece ser restaurada, mantendo suas características originais, e se dispõe a participar da restauração. "A sensação que eu tenho é que eles querem acabar com a casa para construir outra coisa. Eu gostaria que ela fosse restaurada. Ela tem um valor tão grande", observou.

Insegurança

Mas, fora dos livros e das análises arquitetônicas, o que resta hoje é um cenário de deterioração e incômodo. A beleza foi substituída por ferrugem, rachaduras, pichações e vandalismo. 

Entre os vizinhos, o sentimento é de abandono e frustração. A servidora pública Andrea Pires Figueiredo, de 52 anos, mora ao lado da residência e convive de perto com os problemas causados pela falta de manutenção. “Nós sentimos, diariamente, os transtornos decorrentes do abandono da casa. Temos que conviver com a falta de segurança e com os problemas sanitários como acúmulo de água, rato, roubo. A gente reclama, mas nada acontece. Ou vendem o imóvel, ou reformam. É isso que a gente espera”, disse.

Andrea lembra que, há alguns anos, a casa chegou a ser usada como depósito. “Um caminhão parou aqui, eu pedi para o motorista cuidar da piscina, porque estava cheia de água parada. Ele disse que ia avisar. Dias depois, o pessoal da embaixada apareceu perguntando se tínhamos visto movimento na casa. Eu contei sobre o caminhão, e eles disseram que não sabiam de nada. Quando voltaram, descobriram que o caminhão estava roubando os móveis da casa. Depois disso, a casa ficou completamente vazia, e sem nenhuma segurança. Roubaram luminárias, fiação, tudo o que podiam levar”, conta.

A advogada Ana Cristina Santana, 67, expressa indignação com o estado da casa, que tem causado doenças em seus familiares, e em todos os vizinhos, com os focos de dengue pelos objetos que ficam com água empossada no local. Além de atrair ratos e baratas, aumentando a sensação de insegurança na rua. “Está causando muitos problemas para todos nós, principalmente, dengue. Ano passado, meus netos e genros passaram mal. Todo ano essa doença pega os moradores porque o lote está completamente abandonado. Agora furaram o piso da piscina, mas ainda tem calha caindo, telha pendurada. A vizinha de muro jogava do andar de cima cloro na piscina, para evitar dengue”.

Preocupada com os riscos à saúde, Ana Cristina pede apoio do Estado para solucionar a situação. “Nós estamos correndo vários riscos. Não sabemos o que fazer. É uma falta de respeito. E isso desvaloriza o nosso imóvel. Ninguém quer correr risco de vida”.

Veja como está a residência:

  • Nos fundos da casa, alambrado desabou após chuva
    Nos fundos da casa, alambrado desabou após chuva Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Buraco no portão permite a passagem de pessoas
    Buraco no portão permite a passagem de pessoas Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Propriedade da Embaixada da África do Sul está depredada
    Propriedade da Embaixada da África do Sul está depredada Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Vizinhos reclamam de insegurança e descaso da Embaixada
    Vizinhos reclamam de insegurança e descaso da Embaixada Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Propriedade da Embaixada da África do Sul está depredada
    Propriedade da Embaixada da África do Sul está depredada Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Casa está completamente abandonada
    Casa está completamente abandonada Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Ferrugem tomou conta da casa
    Ferrugem tomou conta da casa Minervino Júnior/CB/D.A.Press

A médica Simone Corrêa, 58, mudou-se há apenas três meses para uma casa quase em frente à Residência César Prates. Para ela, além dos problemas de manutenção, a falta de cuidado transformou o local em ponto de vulnerabilidade. “Essa semana, eu vi um homem entrando e saindo da casa duas vezes, provavelmente um morador de rua que já está habitando o imóvel. Isso nos deixa muito preocupados com a segurança. Com as primeiras chuvas, a cerca caiu e o quintal ficou completamente exposto. Também abriram um buraco no portão, por onde uma pessoa consegue passar.”

Simone ainda conta que os moradores já tentaram oferecer ajuda à Embaixada, mas não obtiveram retorno. “Estamos no coração da capital, vendo uma obra de arte sendo totalmente depredada. É de posse de uma Embaixada que não toma providências nem responde aos moradores. O arquiteto projetou símbolos importantes de Brasília, e essa casa deveria estar sendo preservada, não esquecida”, relata.

Para o advogado Hélio Figueiredo Júnior, 60, o caso ultrapassa o incômodo da vizinhança e representa uma falta de respeito com o patrimônio cultural de Brasília. “O que a gente pede é que a Embaixada leve em consideração e tenha algum respeito com o país e com a cidade, porque essa casa tem uma característica de patrimônio cultural. É um absurdo um país estrangeiro deixar como está. Eu espero, sinceramente, que eles tomem uma providência, que eles respeitem o sentimento do cidadão de Brasília e das pessoas que lamentam o estado de degradação desse imóvel, que é muito relevante em termos arquitetônicos.”

Correio entrou em contato com a Embaixada, que informou ter recebido, na manhã seguinte, uma ligação do senhor Alcindo Li, representante do Cerimonial do Itamaraty. Segundo a resposta enviada, “todas as perguntas foram devidamente respondidas, e foram prestados esclarecimentos sobre a situação atual do imóvel e o que ocorrerá com ele”. No entanto, a reportagem não obteve explicações detalhadas sobre a residência, e o Itamaraty não se responsabilizou por fornecer um retorno oficial sobre o caso.

A Secretaria de Saúde informou que órgãos de fiscalização da saúde do DF não têm autorização para ingressar em território nacional sem a permissão do país ao qual pertence a embaixada. A Defesa Civil também não possui autorização para entrar na residência.

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postado em 08/11/2025 08:00 / atualizado em 08/11/2025 08:00
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