
Desde que se mudou para o Setor Habitacional Santa Luzia, na Cidade Estrutural, Daiane Matos, de 35 anos, tem medo de consumir a água do local. Na casa onde mora com o companheiro, há um poço artesiano, mas ele é impróprio para o consumo. A água que sai de lá tem cheiro e gosto estranhos, além de causar dor de barriga, diarreia e vômito. Sem opção de abastecimento, a saída é comprar galões de água potável para beber e usar a do poço apenas para lavar roupas e fazer a limpeza doméstica.
A realidade de Daiane é a mesma vivida por quase todos os moradores de Santa Luzia. O bairro fica às margens da Unidade de Recebimento de Entulho (URE) do Distrito Federal, onde funcionou, por quase seis décadas, o Lixão da Estrutural, que foi considerado o maior da América Latina.
O aterro começou a receber resíduos no início dos anos 1960 e foi oficialmente fechado em janeiro de 2018. Mais de sete anos após o encerramento das atividades, o meio ambiente e, principalmente, as águas subterrâneas da região ainda são afetadas pelo descarte de milhares de toneladas de resíduos a céu aberto.
Nas próximas semanas, será publicado um estudo liderado pela professora Vanessa Cruvinel, mestre em ciências da saúde e doutora em saúde coletiva pela Universidade de Brasília (UnB), que analisou amostras de dois poços, localizados a 140 metros do antigo Lixão — um raso, de 30 metros, e outro profundo, de 70 metros —, além da água utilizada em residências de Santa Luzia.
Segundo a pesquisadora, com relação a estudos anteriores, os resultados mostram melhora na qualidade do poço profundo, mas persistem problemas no poço raso, que serve de parâmetro para a camada do subsolo que a comunidade consegue alcançar com poços artesianos. "Encontramos turbidez elevada (água turva), altos níveis de sólidos dissolvidos, nitrogênio amoniacal e cloreto, bem como microrganismos, o que pode provocar doenças gastrointestinais e urinárias", detalha Vanessa.
Histórico
A pesquisa é desdobramento de outro trabalho, publicado no início deste ano, que avaliou dados coletados pela Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa) entre 2013 e 2022, nos dois poços. Dos 33 parâmetros avaliados, 21 foram analisados de forma comparativa, antes e depois do fechamento do aterro. Os resultados apontaram que, sobretudo no poço raso, parâmetros como turbidez, ferro, cloro, nitrogênio amoniacal e sólidos totais dissolvidos ultrapassam os limites estabelecidos pela legislação brasileira.
"Embora alguns indicadores tenham melhorado após o encerramento do Lixão, a presença de contaminantes indica que o passivo ambiental continua a afetar o solo e as águas subterrâneas", explica a professora. Em alguns casos, como o do nitrogênio amoniacal, houve melhora após 2019, mas, ainda assim, a qualidade da água não alcança padrões seguros.
Por isso, o estudo alerta que os moradores da região, em especial das comunidades vulneráveis de Santa Luzia, estão expostos. "Grande parte das famílias recorre a ligações clandestinas ou poços artesianos para garantir o abastecimento, o que aumenta o risco de consumo de água imprópria", completa Vanessa.
Entre os efeitos diretos que a contaminação pode trazer à saúde, estão problemas gastrointestinais, respiratórios e intoxicações por metais, além de impactos indiretos sobre a saúde infantil e o desenvolvimento cognitivo.
Diagnóstico
Vanessa conta que começou a avaliar a região em 2012, quando o Governo do Distrito Federal (GDF) se preparava para fechar o Lixão. Em 2017, a professora coordenou um diagnóstico epidemiológico dos cerca de 1,2 mil catadores cadastrados no Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Durante meses, a equipe dela atendeu cerca de 20 trabalhadores por dia na Unidade Básica de Saúde da Estrutural, realizando exames de sangue, aferição de pressão e avaliação antropométrica.
O levantamento revelou alta prevalência de doenças de veiculação hídrica, incluindo diarreias, hepatites, leptospirose e outros problemas gastrointestinais. À época, o risco imediato aos catadores, que em grande parte vivia em Santa Luzia, foi reduzido com uma medida simples. "Conseguimos, por meio de doação do Rotary Internacional, a distribuição de 2 mil filtros de barro a famílias da comunidade, o que melhorou significativamente a qualidade da água consumida", lembra.
Mas, para além de ações paliativas e pontuais, a pesquisadora defende que a solução para o abastecimento de água em Santa Luzia passa por políticas públicas permanentes de saneamento básico. Ela destaca que a comunidade, sem rede regular de água, depende de poços artesianos, chafarizes e baldes para armazenamento, o que facilita a contaminação.
"Para romper esse ciclo, é preciso ampliação do abastecimento público, garantindo água tratada e canalizada diretamente às residências, além de monitoramento contínuo da qualidade da água subterrânea, com campanhas frequentes de coleta e análise", ressalta Vanessa, apontando, ainda, a necessidade de educação sanitária para que a população adote práticas de armazenamento seguro e higiene na manipulação da água.
Confira no vídeo as condições do abastecimento em Santa Luzia:
Caesb vai investir cerca de R$ 92 milhões a partir de outubro
A Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) informou, em nota, que, atualmente, a comunidade de Santa Luzia não dispõe de rede regular de água e de esgoto e que os moradores recebem água por meio de dois chafarizes, abastecidos por caminhões-pipa.
"A área é considerada ambientalmente sensível, uma vez que está situada na divisa do Parque Nacional de Brasília. Atendendo a uma demanda histórica, a comunidade de Santa Luzia, uma das mais vulneráveis do Distrito Federal, terá acesso a rede de água tratada, esgoto, drenagem e pavimentação. O investimento é de cerca de R$ 92 milhões e a licitação está em andamento", afirmou a Caesb.
O presidente da companhia, Luís Antônio Reis, informou que as obras começam em outubro e vão durar dois anos. O projeto de saneamento para a comunidade da Estrutural prevê a instalação de uma rede de abastecimento de água com 46,5 mil metros, abrangendo os 89 hectares de extensão da área ocupada pelo assentamento.
"A rede de esgoto terá 35 mil metros e duas estações elevatórias, que vão encaminhar os resíduos para a Estação de Tratamento de Esgoto Norte, em Brasília", detalhou a nota da Caesb. A companhia ressaltou que serão implantados 5 mil metros de galerias de águas pluviais, além de bacias de absorção, pavimentação asfáltica e intertravada nas vias do bairro.
"Todas as etapas de execução do projeto serão acompanhadas por ações sociais e de educação sanitária e ambiental, com a participação de diversos órgãos do GDF", completou a nota, destacando que os recursos foram obtidos por meio de empréstimo com banco privado, aprovado pelo PAC Financiamentos. A Caesb será responsável pela garantia e pelo pagamento das parcelas.
Adasa faz monitoramento
O gerente de Recursos Hídricos da Adasa, Gustavo Carneiro, explica que os números da pesquisa da UnB fazem parte da rede de monitoramento de águas subterrâneas mantida pela agência. "Esse acompanhamento permanente serve para entender como se comportam os aquíferos e a qualidade da água nos lençóis freáticos, informações fundamentais para a gestão dos recursos hídricos", afirma.
Segundo ele, a interpretação dos resultados foi feita pela própria equipe da UnB. "A Adasa fornece dados técnicos de qualidade da água, mas a análise das implicações sociais e de saúde pública extrapola a nossa atribuição. Nosso papel é garantir a coleta, consistência e transparência das informações", completa.
Sobre a possibilidade de reforçar o monitoramento em Santa Luzia, Carneiro esclarece que a Adasa mantém a rede de poços para acompanhar a qualidade da água, mas ressalta: "A análise para abastecimento humano cabe ao prestador de serviços de saneamento. Em áreas não regularizadas, existem dificuldades e até empecilhos legais para a prestação de serviços públicos", destaca.
Ele reforça que a água fornecida pela Caesb nas áreas regulares segue a Portaria 888 do Ministério da Saúde, que proíbe o fornecimento fora dos padrões. "O monitoramento é rigoroso, mas, para áreas não regularizadas, a responsabilidade é diferente", explica.
Moradores cobram providências
Por Vitória Torres
A água, um direito básico, virou motivo de medo, de doenças e de indignação no Setor Habitacional Santa Luzia. Sem acesso à rede da Caesb, por ser uma área irregular, os moradores dependem de poços artesianos ou do abastecimento precário de dois reservatórios mantidos pela empresa.
A dona de casa Elizete Alves, de 38 anos, se mudou com o marido e as duas filhas para Santa Luzia há alguns meses. Desde então, a família passou a comprar água potável para beber, temendo os riscos à saúde. “Nosso abastecimento vem do reservatório, mas apenas para tomar banho, lavar a casa e cozinhar. Para beber, nós compramos galões de água. Não tomamos porque eu percebi que a água vem amarelada, deve soltar ferrugem na água, não sei. Não queremos nos arriscar”, contou Elizete.
Além do alto custo com a compra de água, Elizete lembra do período em que o reservatório ficou sem funcionar por quase três semanas. “Nós passamos muito tempo sem água, o que fez meu esposo cavar um poço, mas esse poço é mais para emergência, porque é contaminado e tem um cheiro diferente. É horrível essa situação. Na hora que queremos uma água, não tem na torneira. Nós não temos esse privilégio. É desumano”, desabafou.
Drama
O drama da catadora de latinhas Patrícia Oliveira, 32, é para tentar manter a saúde do filho, de 2 anos, constantemente afetada pela má qualidade da água. “Como aqui é poço, a gente adoece muito. Meu neném vive com bronquiolite e só pode beber água filtrada ou fervida”, comentou.
Apesar do esforço diário para proteger o filho, a realidade impõe limites. “Às vezes, o caminhão-pipa vem colocar água potável no balde, mas não dá para todo mundo", contou. Segundo Patrícia, a água distribuída tem cheiro de remédio e um gosto muito forte de cloro.
"Meu filho sempre tem diarreia e vômito. Compramos garrafas de água, mas quando não temos dinheiro, tomamos a do poço mesmo, principalmente nesse calor. Não tem para onde correr”, lamentou a catadora.
Para o aposentado Francisco Assis, 62, a água de Santa Luzia faz mal tanto para as crianças quanto para os idosos. "A água do chafariz, que nós usamos para tomar banho, dá coceira. Eu passo creme no corpo após o banho para aliviar”, disse ele, relatando casos frequentes de febre alta e diarreia. “Não existe água saudável aqui. Eu compro galões e também pego de vizinhos que possuem encanamento. É um absurdo viver assim na velhice”, reclamou.
Revolta
O padeiro Cosmo Vicente Salão, 37, também possui um poço em casa, mas assinalou que a água é imprópria para o consumo. “Aqui, pouca gente tem água potável. E quem tem poço, a água é poluída e não tem condição de beber. Tem um gosto estranho, gosto de podre, dá dor de barriga, e todo mundo aqui sofre com isso.”
Cosmo sabe que o antigo Lixão da Estrutural é responsável pela contaminação do lençol freático. “Qualquer poço que for feito vai estar contaminado. Tudo aqui era lixo. A reclamação de todos aqui é essa. Eu me sinto largado, jogado aos porcos.”
Análises
Segundo a pesquisadora Vanessa Cruvinel, as análises mostram que os reservatórios instalados em Santa Luzia, e operados pela Caesb, fornecem água de boa qualidade, considerada confiável no ponto de saída.
"Porém, a contaminação pode ocorrer no transporte e no armazenamento. Os moradores costumam levar a água em baldes e canos improvisados até suas casas, e é nesse trajeto que ela pode entrar em contato com dejetos, animais ou recipientes sujos, perdendo a potabilidade", alertou.
O presidente da Caesb, Luís Antônio Reis, reforçou que as ligações clandestinas comprometem os reservatórios mantidos pela companhia. “A estrutura tem várias torneiras, nas quais os moradores instalam mangueiras imprórias para fazer ligações até algumas casas. Também existe um cano subterrâneo, cheio de furos de 'gatos'. Isso, sem dúvida, afeta a qualidade da água”, disse.